Atividade 1- Ciranda de memórias de nossas alfabetizações na infância: proposta de uma narrativa detalhada do processo de aprendizagem das alfabetizadoras em processo, seu letramento, experiências de alfabetização, escola, professora, métodos, lembranças.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Melina Galvão

Memórias de alfabetização

Minhas memórias de infância vêm carregadas do desejo de ser professora que percorreu a minha trajetória profissional desde os meus quatro anos de idade. Acreditem se quiserem, mas assim como cantores famosos cantam desde pequenos, eu sinto que comecei minha carreira de professora muito pequena. Digo isso, porque minhas alfabetizações de mundos, meu dia a dia, foi vivenciando a rotina da escolinha infantil da minha mãe, que também é professora, além de minha melhor amiga e parceira de descobertas e experiências nessa profissão que é nossa paixão.

Brinquei muito, corri muito, conheci muitas crianças e ao mesmo tempo tinha o desejo de participar de todos os momentos da organização escolar. Assistia as reuniões semanais de professores, acompanhava minha mãe nos atendimentos de pais, entre qualquer atividade do cotidiano de uma escola infantil. Já exercia um papel de liderança entre as crianças, ajudava as professoras. Era um sonho, eu amava e lembro-me dos mínimos detalhes. 

Cresci nesse meio, sempre desejando ser professora quando crescesse. Além dessa convivência tão forte com a minha mãe, tive também a presença ativa do meu pai, que desde sempre conversou muito comigo, sempre me trazendo algum conhecimento novo. Desde como se dirigia um carro, até que eu deveria batalhar para conquistar minhas coisas. Fui educada para ter opinião, para ser uma mulher forte e determinada. Para ser uma cidadã crítica e reflexiva. Isso deu muito trabalho aos meus pais, pois não é fácil lidar com pessoas questionadoras.

Meu processo de alfabetização formal iniciou-se na escolinha da minha mãe, que já tinha uma prática construtivista, lembro-me de participar de avaliações de leitura e escrita, de aprender livremente, de ter a oportunidade de exercitar minhas hipóteses em brincadeiras e atividades diversas. Cheguei à primeira série alfabetizada, e apesar de gostar de estar na escola, me sentia desmotivada com as atividades, que já me eram bem conhecidas, de: preencher linhas, trabalhar com letras descontextualizadas, entre outras. E a melhor alternativa era conversar, eu conversava muito na aula, e isso se transformava em queixas para a família.


Minha mãe começou a enfrentar uma batalha na escola, justificando para professoras e o setor pedagógico os motivos da minha falta de interesse nas aulas, o que culminou em uma oportunidade de fazer uma testagem para ver se eu estava “apta” a avançar para a segunda série. Lembro do dia do teste, um dia difícil, pois as professoras se mostravam contrariadas, me sentia pressionada durante a avaliação, mas consegui vencer o desafio, e fui para a nova turma. A segunda série já fez parte de uma nova fase de adaptação, uma adaptação longa. Lembro de não querer frequentar a escola, de não querer participar das aulas, o que foi sendo superado gradativamente. Mesmo com todas essas emoções nesse início de trajetória escolar e com as dificuldades enfrentadas, sempre gostei muito de estudar. Não tenho traumas ou más recordações, acho que as vivências na escolinha da minha mãe e toda a base familiar que tive foram fundamentais para me tornar quem sou hoje. Tive uma infância deliciosa, construí muitas aprendizagens significativas e me tornei uma profissional apaixonada pelo que faço recheada desses atravessamentos e experiências, analisando criticamente cada professor que passou em minha vida, desde o período inicial da vida escolar, pensando sempre em quais eu me inspiraria e no que eu nunca iria me transformar. 

sábado, 23 de setembro de 2017

Paula Acássia de Oliveira

                                                       A mão e a voz que alfabetiza

“_Sobe a mão até lá em cima e deeeeesce, assim...isso mesmo!

“_Viu só? É fácil...Agora, copie essa letra que é a letra do teu nome...”

Uma voz suave com cheiro de café, me conduzia pelo  caminho e pelas formas das letras, alta e baixas, redondas e finas... Assim,  começo a recordar de minha passagem de leituras das “coisas”, porque li as palavras ouvindo muitas formas de entender o que se passava por ali, nos meus primeiros anos de aprendiz...  Acompanhava diariamente minha mãe a folhear jornais, revistas, bula de remédio, e tudo o que calava sua voz aguçava minha atenção e pronto: lá estava ela murmurando, lendo alguma coisa. Comecei  por volta da mesa, de joelhos nas cadeiras, rabiscando os jornais velhos, contornando as letras grandes. Fecho os olhos e lembro: _ Paula...é essa aqui: “P” de pato...essa oh! Assim, aprendi a escrever meu nome: pelas letras de jornais.

Ainda hoje, ao folhar um livro muito antigo ou uma foto com algum registro escrito no verso, encontro meu nome escrito pela minha mãe e, abaixo, minhas letrinhas. Lembro  daquela mão esquerda, tentando me guiar  firme e das  vezes que me fez escrever quilômetros nos cadernos de caligrafia.
(Por que a gente chora ao lembrar esse tempo?)

Não frequentei o Jardim de infância, fui com sete anos para a primeira série do fundamental, e a memória me traz a sensação de sentir o cheiro da sala de aula, do assoalho de madeira muito empoeirado.  O barulho das pisadas, o arrastar de cadeiras, o apagador batido forte no quadro, o pedindo silêncio. 

As inúmeras bolinhas de papel crepom que contornei as letras e desenhos, as coloridas raspas do giz de cera e a mágica cor que transparecia nas folhas brancas com cheiro de imaginação...quantas saudades. Tinha o feijão brotando num algodão úmido, vigiado, diariamente num tempo eternizado, adubado de amor. Os recreios, os pãezinhos caseiros com mel, embrulhados num pano de copa e cheiro de casa na escola.  Lembro da praça do bairro, que era ao lado da escola. A única praça ali perto. Íamos em grupos: Os mais velhos cuidavam dos mais novos, dia de festa!

Não posso dizer que minha alfabetização se iniciou nesse tempo, mas comecei a ler o mundo das coisas imóveis, por pessoas móveis. Por pessoas amor, por amor de pessoas, em lugares que fui. Minha querida professora tinha olhos grandes, cor de amêndoa, cheiro de creme de rosas, usava um relógio e um anel brilhante. Seus cabelos eram cacheados, seus dentes branquinhos (Querida professora Elisete, ainda tenho o meu boletim, com a tua pintura na capa!) Quase nunca faltava, mesmo em dias de chuva e sol, lá eu ia faceira com minha sombrinha vermelha.

Fui  aluna média. Sempre vinha uma observação: precisas conversar menos! Estude em casa!

Filha do meio, pais pobres, de poucos estudos, sempre me diziam que tinha que estudar para “ser alguém”. Reprovei algumas  vezes durante o período escolar. Período escolar, este que ainda é de notável rigidez e praticamente igual ao que vivi em 1988. Nunca fui boa com os números. Via um, identificava outro, trocava muito. Essas lógicas que exigem das multiplicações e divisões, me desclassificavam, me deixaram longe várias vezes dos meu colegas” inteligentes”. Tinha muitos amigos, tínhamos inúmeras brincadeiras em comum, mas eu não sabia a tabuada do sete. Ficávamos correndo o pátio, todos os dias, mas eu não soube fazer divisão. Assim, me distanciei de uma colega que um dia chorou e me confidenciou , dizendo que estava com muitas saudades da sua mãezinha, que havia partido. Fui fiel. Fui amiga, companheira  e solidária. Mas não tive condições de ir em frente com ela, porque não aprendi  a divisão...  E desde então, aprendi a ler letras e ler o tempo. A palavra eu decifrei e o tempo me disse que eu não o acompanhava. Ou alguém me disse que eu não compreendia a tempo! Qual tempo? O meu ou o de quem me deu o tempo? Por muito tempo, eu perdi o tempo. Por muito tempo, eu não aproveitei o  pouco tempo e ele me deixou pra trás. Pra trás onde, se estou aqui sentada voltando no tempo... Quem disse que ele não era meu?


Aprendi a ler desde quando ouvia o pulsar do coração de minha mãe. Lembro da sua voz afônica, ainda dentro do seu colo, lembro muito. E pelo olhar aprendi o que é amorosidade, brabeza e alegria. Lia, então, reações e sentimentos. Li e aprendi a conviver entre irmão, aprendi então a dividir. Aprendi que, lá na escola, eu tinha tempo pra mostrar tudo isso através do lápis que segurava sozinha e corajosamente.  Aprendi a ler, e para compreender me esforço muito desde de pequena. Sigo me alfabetizando de vidas: as  que já tive e as que encontro com o passar dos tempos.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Graziela Badaracco

                                             Libertando minha pequena criança                                                                                                    
Eu me concentro, coloco uma música que remeta à minha infância ou que, ao menos, me deixe mais leve - leveza remete à infância. Começo a acessar minha memória infantil que está lá, escondidinha. Confesso que não é fácil deixar a criança chegar, pois aprendi que devemos crescer e que um adulto tem seus compromissos, seus horários e que a brincadeira acabou, e que  agora é trabalho, ganhar dinheiro, possuir uma posição de destaque na vida profissional, ter filhos, casa própria...ufa! Sinto que ao longo do caminho, minha criança foi sendo sufocada. Aos poucos, engolida pela areia movediça dos compromissos de gente grande. Mas sei que preciso conectar à menininha que gostava de brincar de bonecas, dançar em cima da mesa de centro, na sala da casa. Então, prossigo na busca daquela criança. Minhas primeiras lembranças do início da vida escolar são do meu uniforme: saia de pregas na cor azul marinho, tênis branco, camiseta amarela e lancheira da mulher maravilha. Meu contato inicial com a escola foi no Jardim de Infância, na Escola de Ensino Fundamental Professor Leopoldo Tietbohl.  Como meus pais precisavam trabalhar, antes de ir para o trabalho, minha mãe me deixava na casa dos meus avós e lá eu ficava até a hora de ir para a escola. Quem cuidava de mim durante o dia eram meus avós. Lembro muito bem: eu, de mãos dadas com meu avô, ou quem estivesse disponível para me levar até a escola. O percurso era a pé, estudava no turno da tarde. No caminho para a escola, passava por casas lindas, com jardins imensos e um prédio confeitado de merengue, com janelas de chocolate, mas só eu sabia que aquele tinha sido construído daquela forma. Durante o trajeto para a escola, a melhor parte era passar pelo tal prédio, ficava imaginando como seriam as famílias e as crianças que habitavam aquele lugar, será que eles ajudaram a confeitar? Como seria o interior dos apartamentos, camas de biscoito e maçanetas de jujubas? Mas, depois do prédio de merengue vinha o primeiro desafio que precisava vencer: uma imensa lomba, que não se enxergava o fim. Fizesse chuva ou sol, e no sol principalmente, eu lembro que saía de casa toda cheirosa, linda com minha saia de pregas e camiseta amarela e quando chegava perto da lomba vinha um desânimo só de pensar que tinha que subir tudo aquilo. Chegava no topo da lomba, suando. Na entrada do colégio, havia uma escadaria gigante e para chegar até a sala de aula do jardim de infância, ainda era preciso atravessar o imenso pátio da escola, subir mais escadas, até chegar ao anexo do Jardim de Infância.  Mas todo o esforço valia a pena, um lugar mágico. Nunca tinha visto tanto brinquedo reunido em um só lugar. O que eu mais gostava era o de blocos de montar do pequeno construtor, tijolos, com torres - eu podia criar casas, cidades, estações de trem, me divertia muito. Minha lembrança mais marcante no mundo das letras, foi um pouco traumática, não sei se traumática é bem a palavra, mas meu coração se apequena, uma sensação de desconforto e angústia tomam conta de mim. Era uma data especial: dia do professor ou aniversário da professora, não consigo precisar muito bem. As mães dos meus colegas se reuniram para comprar um presente para a tia Clarisse. E todos os colegas, escreveriam seu nome no cartão para a “tia”, fiquei em pânico, eu não sabia escrever o meu nome, e então como seria? Não faria parte da homenagem para a “tia” Clarisse. Foi então que minha irmã, dez anos mais velha que eu, percebeu meu desconforto e me apresentou o mundo das letras através da escrita de meu nome. Foi um intensivo de três dias, ela escrevendo e eu copiando, copiando, até que não precisei mais copiar e escrevi sozinha. Recordo muito bem, eu na escadaria para o anexo do jardim de infância, escondida junto com meus colegas escrevendo meu nome no cartão para a “tia” Clarisse, um orgulho que não cabia dentro de mim. Sim, “tia” - naquela época, chamávamos as professoras de tia, provavelmente os educadores e estudiosos daquele tempo acreditavam que, chamando as professoras de tias, estabeleceríamos uma relação mais próxima com a escola e o tempo que ficaríamos com as “tias” seria mais leve e descompromissado.  

Giane Dias

                                                    Minhas lembranças primeiras
                                                                                                           

Minha infância foi no campo. Não havia energia elétrica, nem TV, nem qualquer tipo de literatura. Não recebíamos jornais, nem tínhamos acesso a livros. Vez por outra, minha mãe recebia cartas de parentes que moravam fora do estado e no exterior. Quando acabava a luz do dia, ficávamos reunidos, com ela, ao redor do lampião. Aproveitava para nos contar histórias, ler as cartas e ouvir o rádio conosco. Até que nosso pai chegasse do trabalho. Após, íamos cedo para a cama, entre 20h e 21 h no máximo. Ao amanhecer, acordávamos cedinho, refeitos para um novo dia.Brincávamos pela chácara
correndo, pulando, fazendo casinhas, subindo em árvores. Cantávamos musiquinhas que nossa mãe nos ensinava, e as acompanhávamos de instrumentos feitos por ela mesma, com as antigas latinhas de azeite, da década de 1970. Formávamos uma bandinha e saíamos pela estrada para buscar os animais a seguir nosso pai no campo, ou ir à fonte d’água acompanhar nossa mãe, sempre cantando e batendo latinhas. O primeiro livro infantil que ganhei de minha madrinha, chamava-se “Meu Apelido é Lili”. Eu decorei tudo o que dizia nele. Lembro-me que pedia aos adultos para que o lessem para mim. Aos poucos fui decorando e fazendo associações com os desenhos das páginas, e já sabia em cada folha o que estava escrito, ainda que não reconhecesse muitas letras. Aos domingos, tínhamos acesso a muitos episódios de histórias infantis, por meio do rádio, que apresentava um programa de histórias, como “O Gato de Botas, A Branca de Neve e os Sete Anões, A Bela Adormecida, João e o Pé de Feijão e outras. Para frequentar o pré-escola, precisava permanecer de segundas a sexta-feiras na casa de minha avó, na zona urbana. Onde minha família morava, não havia escolas. Minha primeira professora chamava-se Cila. Dessa fase, lembro de aprender a desenhar em folhas e no caderno e usar as cores para colorir. Eu tinha uma merendeira verde-limão. A professora do 1º ano chamava-se Helena. Lembro-me de recortar letras de revistas, para formar palavras. Antes, eu decidia as palavras que desejava formar, e só depois procurava as letras. Por isso, eu demorava bastante. Mas não desistia, procurava todas as letras, até que conseguisse formar as palavras que escolhia. Recordo também, de ficar juntando as letras que encontrava pelos caminhos que passava; em placas, letreiros de ônibus, em frente de casas comerciais, para tentar descobrir o que estava escrito, sem perguntar a ninguém.Era amiga íntima de minha professora Helena. Ia para sua casa aos sábados, passeava e almoçava com ela. Quando ela escutou seu nome no listão de aprovados do vestibular da UFSM para Odontologia, em janeiro de 1976, eu estava juntinho dela, e vibrei com a mesma. Já estava de férias, mas tinha ido passear em sua casa. Ela pedia regularmente, ao meu pai que me levasse pra casa dela. Minha prova de final de ano, teve o desenho de um pinheiro com bolinhas e estrelas para colorir. Pintei-o de verde. As estrelas, pintei de amarelo e as bolinhas de cores diferentes. Ao voltar para casa na zona do rural, no término da temporada, ensinava meus irmãos mais novos a lerem e escreverem. Brincávamos de aula. Eu era a professora e eles eram os alunos. Escrevia no chão do pátio de terra arenosa, à sombra das árvores, no verão. E eles reproduziam, usando galhinhos quebrados das árvores para riscar a terra. Já nos bonequinhos que desenhávamos, usávamos bolinhas de cinamomo para preencher os olhinhos. Também, escrevíamos as letras das musiquinhas infantis que cantávamos com minha mãe. No ano seguinte, eu já conduzia meus irmãos, que foram matriculados na mesma escola.Caminhávamos alguns quilômetros por estrada de chão, até o ponto onde passava o ônibus com destino à zona urbana de Santa Maria. Viajávamos um tempo aproximado de 90 minutos, e chegávamos a nossa amada Escola Municipal de 1º Grau “Duque de Caxias”. Lá eu me sentia em casa - exatamente como se a escola fosse minha segunda casa e família. Minha “profe” Helena, veio estagiar em Odontologia, tornando-se minha dentista, e me ensinando muitos cuidados com os dentes e saúde. Eu participava de todas as atividades da minha escola quanto podia. Ora como atleta, ora como declamadora de poesia, ora como cantora no coral. Também, apresentava danças tradicionalistas com trajes típicos. Fui muito feliz na minha primeira escola. Aproveitava as diferentes oportunidades para aprender sobre tudo que me era acessível.”

Anne Gabriela Ferreira de Abreu

Letramento e alfabetização em meus primeiros anos de escolarização
                                                                                       

      Em minha primeira experiência escolar, no Jardim de Infância, fui pouco assídua. Gostava de ir à escola somente quando minha prima de mesma idade também ia. Tinha muito medo de ficar só naquele lugar. Talvez pelo medo, costumava ser desatenta e vagarosa em tudo o que fazia naquele
espaço. Sim, porque em casa eu era ativa, mas na escola não tinha tanta intimidade com todo aquele universo. A pracinha, a rodinha, os papéis! Tudo tão novo que foi despertando receios e encantamentos! Tudo tão banal aos olhos adultos, mas tão intenso para minhas primeiras olhadas, primeiras tocadas. Destaco meu encantamento por andar na gangorra, fechando os olhos sob um sol forte. Eu enxergava cores! Eu via (e sentia) as cores! Nesse brincar, sentia uma boba e profunda alegria! Também recordo do meu encantamento em peneirar a areia, separando as pequenas pedras e obtendo aquela areia bem fina, gostosa de tocar. Outra grande emoção foi riscar, rabiscar, em uma lixa com o giz de cera. Que lindo era observar aqueles resultados!
      Os encantamentos aconteciam, mas acredito que os estranhamentos eram maiores. Estranhei ordens, comandos, posturas. Não conseguia responder na velocidade esperada aquelas instruções motoras para andar sob e sobre a cadeira, baixar/levantar/pular, obedecer. Eu era lenta, talvez por estar “muito em mim mesma”, em um tempo muito singular de descobertas. Encantada com as novidades e com dificuldades de me adaptar a outro tempo que não o meu.
      Dessa forma, o Jardim de Infância passou. Passou deixando suas marcas. No ano seguinte, fui para a primeira série. Fileira de classes e cadeiras. Tudo tão difícil de organizar em minha mente, de coordenar, que eu facilmente esquecia onde era o meu lugar. Houve uma mudança de escola. Da
escola seguinte tenho poucas lembranças deste primeiro ano. E lá eu ia diariamente, mas também não me lembro de detalhes, de sequências. Certamente, seguia desatenta. Das memórias guardadas, lembro de algumas colegas que gostavam de mexer e arrumar o cabelo de minha professora. Lembro de uma página do livro que eu amava, porque tinha a figura de um bebê, e eu amava bebês. Talvez essa tenha sido a primeira palavra que eu tenha lido. Uma palavra dotada de afeto e de sentido. 
     Também foi na primeira série que descobri o que era um boletim. Descobri quando minha tia disse que minhas notas estavam ruins e que se eu não estudasse seria reprovada. Temi repetir o ano, ser marcada pelo “fracasso”, pela impotência. Não sei bem o que fiz, mas não fui reprovada. Não sei se conquistei a decodificação ou se minha professora apostou que eu aprenderia no ano seguinte. Embora eu tenha poucas memórias desses dois primeiros anos sei que, na sequência, fui uma apaixonada pelos afazeres escolares. Talvez minha relação com as professoras seguintes foi me deixando mais próxima do universo escolar, onde eu passei a gostar de fazer cada atividade, onde eu sentia que descobria coisas diferentes das que eu tinha em casa. Acredito que deve ter havido uma aposta nas minhas aprendizagens, de modo que passei a ser reconhecida pelo que fazia e isso era um grande estímulo. Embora não lembre o momento dessa mudança, vejo uma profunda diferença na estudante desacreditada à estudante de referência, a que tinha sucesso nos fazeres escolares. Cheguei a me entusiasmar tanto que minhas brincadeiras eram muito em torno do universo escolar. Brincava de professora “sem parar”. E, no entusiasmo com a escrita, passei a querer inventar histórias.
      Lembro-me de sentar em uma escrivaninha em casa e escrever uma longa narrativa, inventado uma história a partir de uma imagem dos personagens da Vila Sésamo. Foi uma fluência inventiva, onde fiquei encantada com o que estava a produzir. No dia seguinte, levei entusiasmada para a minha professora ver o que eu tinha feito. Minha sensação era de que ela iria adorar. Mostrei a ela, ainda no pátio, o meu escrito. Ela não deu muita atenção. Nunca deu um retorno sobre o feito. É incrível essa memória. Eu acreditava que aquilo valia muito e, no entanto, não teve demonstração de valor algum. Hoje, penso que essa ausência de valor não me tornou uma má estudante, mas certamente, não fez uso daquela potência que ali se manifestou. Eu estava pronta para mergulhar profundamente no universo da invenção e da escrita, do registro, e não tive uma escola que valorizasse isso. E precisava ser a escola que me acolhesse nesse fazer, afinal, minha casa era um universo distante da escrita, letrada para a televisão e longe dos livros, das histórias escritas. Era a escola que estava a me abrir outro universo, a ampliar meus repertórios culturais. 
      Ainda que com estas e algumas outras limitações, as escolas pelas quais passei realizaram um importante papel em minha trajetória. Sobretudo, porque para além de toda a limitação curricular, a escola era – e ainda acredito que seja – uma grande oportunidade de encontros, de humanidades. Em seus corredores, nas suas brechas, eu via muita vida e sentia-me muito feliz em aprender coisas ali. Tinha algumas amigas e era muito próxima aos professores. Adorava conversar com eles, saber como organizavam suas vidas, como superavam seus problemas. Um currículo oculto que talvez tenha tido maior sentido do que o que estava explícito. Um currículo que de fato corria, corria em busca do saber, do que nos faz humanos. Porque o pulsar da vida é muito forte e quando encontra uma mínima possibilidade de se reconhecer manifesta-se e multiplica-se, fazendo uso de toda a sua potência.

Alexsandra Cardoso da Silva Nunes

                                    Relato de minha alfabetização                                                                           
      Quando iniciei o ensino fundamental, já sabia ler e escrever e adorava fazer “cálculos”. Antes, havia frequentado, dos dois aos seis anos, a Educação Infantil. Minha mãe lembra que não precisei de adaptação, mas ela, sim, pois quando me levou à escolinha, peguei na mão da professora, que ainda se nomeava de "tia", e abanei, despedindo-me dela. Ela foi quem chorou, porém, compreendeu que, daquele instante em diante, a escola seria um espaço de divertimento, aprendizagem e relações saudáveis.
      Com seis anos e meio, entrei na 1ª série. Escola nova, colegas novos, rotina diferente, livros, cadernos, um pátio enorme (na concepção de criança), várias possibilidades. Não lembro, exatamente, como a escola organizou as turmas, contudo, entrei na sala de aula com a fila formada por aqueles que seriam os meus colegas. Aliás, até hoje, alguns daqueles colegas/amigos fazem parte da minha realidade. O nome da minha professora era Kátia.
       Diz minha família que sempre fui uma criança muito curiosa e perspicaz. Também aprendia as coisas com rapidez e autonomia. Imagine na escola. Queria experimentar todos os brinquedos do pátio, participar de todas as atividades. Na sala, queria sempre responder todas as perguntas, escrever no quadro, distribuir os livros e as folhinhas para os colegas, buscar objetos para a professora, ensinar as outras crianças. Conhecia quase todas as músicas que cantavam na aula. E, quando não conhecia, olhava atentamente para a professora para aprender a letra. Uma ou duas vezes ouvindo e balbuciando algumas palavras, já bastavam para cantá-la, com entusiasmo. Quando conheci a biblioteca, foi uma festa. Se fecho os olhos, consigo ver a imagem dos colegas escolhendo livros e eu, sentada no meio das estantes, encantada com tanta história.
      No final dos bimestres, a escola entregava boletins aos pais. Documentos com notas e breve parecer da professora. Minhas notas eram altas. No quesito comportamento, sempre tinha algo do tipo “precisa manter-se sentada em sala de aula, pois como acaba suas tarefas com rapidez, passa de classe em classe para ajudar os colegas e assim poderem brincar”. Meus pais conversavam comigo, dizendo que eu não podia atrapalhar a aprendizagem dos colegas. Deveria esperar todos terminarem as tarefas para depois brincar.
       Meus pais foram muito presentes no período de alfabetização. Adoravam olhar minhas atividades, gostavam de ouvir minhas histórias, participavam de todos os eventos da escola, divertiam-se com a minha lógica para explicar os fenômenos diários. Meu pai suspirava orgulhoso nas minhas apresentações de dança. Minha mãe curtia muito a fase de comprar materiais, sobretudo, cadernos. Ela os encapava com capricho, normalmente com pedaços de tecido. Ficavam lindos. Eles estimulavam a mim e ao meu irmão a desenvolver o raciocínio lógico, por meio de jogos de tabuleiro, principalmente, e o gosto pela leitura. Meu pai era amante de gibis, Tio Patinhas, Almanaque Disney e Mickey eram seus preferidos. Minha mãe devorava livros de suspense e romance. Tínhamos uma assinatura de livros de uma editora. Todo mês recebíamos uma caixa com cinco  títulos diversos. Era uma festa abrir aquela caixa. Quando não brincávamos na rua com a família e com os amigos, estávamos em casa jogando varetas, dominó, Banco Imobiliário, jogos de perguntas e respostas, Scotland Yard, entre outros tantos.
          Lembro bem, numa das conversas que a professora teve com minha mãe, sobre o fato de eu ser uma criança “muito ativa”. A partir daquele dia, a professora passou a me entregar palavras cruzadas, quando eu concluía as tarefas. Até hoje, adoro esse tipo de passatempo. Não recordo de situações que poderiam ser consideradas negativas. Sempre curti muito a escola e tudo o que ela oferecia.
       Hoje, como professora, vejo minhas atitudes nas crianças que compõem a minha turma de trabalho. E adoro o movimento delas. A curiosidade, a alegria de compreender a atividade, de aprender, de construir novos conhecimentos. Sinto-me muito à vontade na escola e acredito que este sentimento passe pelas experiências positivas que tive ao longo de minha formação.


sexta-feira, 10 de março de 2017

Marina Silva Galvão

Minhas memórias
                                                           
Nos últimos tempos, minha memória está me traindo. Portanto, não conseguirei contar em uma sequência cronológica, fatos impressões e sentimentos.
Vou iniciar, isto não está em uma memória apenas vivida, mas muito mais em uma memória que me foi contada. Sou filha de um catarinense de Laguna e de uma gaúcha do Rio Grande. Ambos, vindos de famílias com muitas dificuldades financeiras. Minha mãe perdeu a mãe no parto de sua irmã, aos 14 anos. Ajudou a tomar conta dos irmãos. Meus pais conheceram-se e casaram-se em Porto Alegre.
Ambas as famílias eram militantes do Partido Comunista. Após o nascimento de minha irmã mais velha, tiveram que ir embora para Santa Catarina. Apenas onze meses depois do nascimento de minha irmã, eu vim ao mundo.Tenho vagas lembranças de morar lá, lembro por exemplo, de estar sem a minha mãe, quando ela foi para Laguna fazer o parto do meu irmão. Não sei porque ela saiu de Florianópolis para ir para Laguna. Tenho em minha memória este período difícil, a separação da minha mãe muito sofrida.
Vivíamos uma vida muito difícil, sem recursos. Meu pai dava conta do básico, alimentação, moradia e roupas, e brinquedos não possuíamos. Minha mãe se desdobrava para tomar conta de três crianças pequenas.
Eis então que surge nosso primeiro brinquedo, meu irmão. Eu e minha irmã tínhamos cada uma, saia de armação. Era azul cheia de babados. Lembro com muita nitidez. Colocávamos uma como saia e a outra como cabelo no meu irmão. E ele virava nossa linda boneca. Ele era lindo, bem gordinho, adorávamos brincar com ele.
Esta cena ficou marcada em minha memória. Meu pai tinha, em Florianópolis, uma gráfica que fazia propaganda do partido comunista. Com o golpe de 1964, esta, foi descoberta pela polícia política, e tivemos que fugir. Lembro quando ele contava que foi só o tempo de fechar a gráfica e, na rua, encontrar um policial à paisana, que lhe perguntou se sabia onde ficava a gráfica. Ele é claro, ensinou um lugar oposto e escapou.
Viemos para Porto Alegre e aqui ele foi trabalhar em uma gráfica. Só que esta não confeccionava material de propaganda política.
Meus avós, avô paterno e materna, estiveram presos durante o regime militar. Alguns dos irmãos de minha mãe também. Essas lembranças povoam minha mente. Lembro, de uma noite em uma das casas que moramos, meus pais e dois irmãos de minha mãe, queimando material de propaganda contra a ditadura e favorável ao regime comunista. Lembro da polícia revistando nossa casa.
 Meu pai lia jornal e minha mãe obras literárias. Algumas foram “Olga”, “Subterrâneos da liberdade”, “Capitães de areia”, etc. Não é por acaso que meus “heróis não morreram de overdose”. Sempre foram desde criança: Marx, Engels, Fidel, Tche, etc. Certamente, aí iniciou-se minhas alfabetizações de mundos.
Meu pai estudou até a terceira série e, minha mãe, quarta ou quinta. Não me ajudaram em tarefas escolares. Meu pai sempre trabalhou muito e minha mãe tomando conta da casa e filhos. Mas nos mostraram a importância de estudar. Nos seus discursos, estava implícito que uma pesso se faz através do seu conhecimento e da sua leitura de mundo.
Da escolarização propriamente dita, lembro-me pouco. Sei que a primeira série fiz na escola Luciana de Abreu. O que lembro nitidamente foi a dificuldade de separar-me da minha mãe. Isso foi um sofrimento profundo. Fui uma criança extremamente tímida, com muita dificuldade de relacionamento e a separação me parecia algo intransponível. Sei que me alfabetizei na primeira série, sem dificuldades. Mas sei também que a escola não era prazerosa. Não lembro o método. Mas vagamente lembro-me dos exercícios motores e cartilha.
Vejo meu pai como uma pessoa que desenvolveu sua potência por si só. Não teve escolarização, mas tinha um conhecimento de vida fantástico e um conhecimento científico adquirido a partir de muita leitura. Conseguiu sucesso profissional sem estudar. Tinha o dom da eloqüência. Era um líder nato ou desenvolvido, não sei. Agregava pessoas tanto no âmbito do trabalho, como pessoal. Isso com humor sagaz e com sua retórica. Claro que na dimensão psíquica, tinha várias questões não resolvidas. Mas foi um exemplo para mim.
Todos esses entendimentos se deram com a maturidade. A escola vivida durante todo o período durante a ditadura militar não me deu esta visão humanizadora e progressista. Muito pelo contrário. Esta foi totalmente castradora. Se não fossem todos os conhecimentos aprendidos da minha dimensão cultural, talvez fosse mais um sujeito levando a vida de “gado”.
Minha bandeira não é a de luta nas ruas, nos movimentos sindicais e partidários. A minha bandeira é de ter um profundo respeito ao ser humano, com toda a sua diversidade. É a de tratar bem para mostrar que isso faz de nós humanos. E, no meu trabalho, ter profunda consciência ética da importância desta, para a sociedade.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Profª Iara Arrussul Torres

Minhas Memórias 



                                                                                 
Lembro da minha primeira escola, com muito carinho. Chamava-se Escola Estadual Dr. Alexandre Lisboa, e ficava bem pertinho da minha casa, uma quadra e meia. Íamos a pé. Usava um avental branco com um laço na gola. Minha mãe sempre bem cuidadosa - aquele avental era impecável de tão branco. Se fechar os olhos, sinto até hoje o cheiro do meu lanche. Oh, como as lancheiras eram perfumadas! Abria a minha lancheira e exalava aquele cheiro de maçã, suco de limão ou laranja na garrafinha e bolachinha Maria ou salgada, recheadas com goiabada.
As turmas eram pequenas, muito organizadas. Quando penso na minha professora, ela está sempre sorrindo. Embora se mostrasse carinhosa, havia um respeito, um distanciamento muito grande entre aluno/professor. Eu adorava minha professora, e ir para a escola era fantástico. As brincadeiras no recreio eram rodas dirigidas, pois o espaço era bem pequeno, acho que iam uma ou duas turmas de cada vez para o pátio.
Teve um incidente que me marcou muito: estávamos estudando as vogais e a professora deu uma folha mimeografada com a palavra UVA e um cacho de uva para pintarmos com tintas. Pintei, com todo capricho, delicadamente com o uso de um pincel, tinha ficado lindo! Aí, uma coleguinha derramou tinta em cima do meu trabalho, ficou todo manchado, chorei muito. Fiquei tão triste que lembro até hoje.
Adorava brincar de professora. Na minha casa, tinha um quadro e giz, e eu dava aula para minhas irmãs e vizinhas. Mas a melhor e a maior escola era o pátio da minha casa. Era enorme, com muitas árvores frutíferas, subíamos nas árvores, comíamos frutas, corríamos, andávamos de bicicleta, montávamos casinha embaixo das árvores, brincávamos de boneca, fazendo comidinha de folhas bem picadinhas nas panelinhas. Subíamos em cima da casa. Íamos, que nem macacos, do muro para árvore e dela para o telhado. Naquela época, as meninas só usavam vestidos (fala da minha mãe). Ela mandava fazer umas calças horríveis para eu não sujar os joelhos.
As lembranças dos livros e historinhas vem do meu pai. Todos os dias, após o banho das três irmãs, todas sentadas em banquinhos, de vestidos engomados, no pátio de casa, a mãe penteava os cabelos das meninas e o meu pai contava e inventava historinhas para as filhas. Era lindo! Era mágico! Nossa imaginação voava com as bruxinhas boas das histórias para outros mundos, mundos de paz e de muita amorosidade! Sinto muita gratidão, e desejo expressá-la, à minha família, por essa infância feliz! Gratidão ao curso Alfabetização de Mundos, por nos proporcionar este reencontro com as nossas crianças interiores, também por meio desta "Ciranda de Memórias".

Carita Costa Martins

                                                                                             
Memórias 

      Entrei para a escola já na primeira série. Guardo com profunda admiração as lembranças da minha professora, a Berenice. Berê, como é carinhosamente chamada até hoje, cabelos crespos, sorriso largo e contagiante, tem a voz suave, porém potente! Ainda fazemos alguns contatos e ela deve ter as inúmeras cartinhas que eu mandava para ela! 
        Eu tinha uma mochila que era um urso, ou um cachorro, não recordo ao certo ,mas os pezinhos da criaturinha ficavam balançando e batendo nas minhas costas, conforme caminhava! Lembro que tínhamos um caderno, que era nossa cartilha, nela continha o alfabeto, cada página uma letra, alguns desenhos de objetos que tinham a inicial da palavra. Cada dia coloríamos uma, fazíamos o pontilhado e colávamos na cartilha. Fui uma criança quieta, falava pouco e observava mais, era muito tímida. No recreio, gostava de brincar de virar cambalhota nos ferros que cercavam parte do pátio. 
     Um dia, saímos atrasados. Meu irmão quem me levou nesse dia, talvez por isso eu tenha esquecido de trocar de calçados, e quando chegamos na escola, me dei conta que estava usando os chinelos do Sonic (personagem de jogo de vídeo game), ou seja, de menino! (risos). È claro que iriam rir de mim! Justamente nesse dia fiz xixi nas calças! Lembro claramente da professora me socorrendo. Ela arrumou outra bermuda para eu vestir, lavou a minha e pôs para secar. A atitude tranquila dela fez eu me sentir acolhida, num momento tão constrangedor, tanto que no recreio lá estava eu, virando cambalhotas e nem lembrando mais do acontecido. Voltando aos chinelos do Sonic e de menino, achei bacana! Sinal de que na minha casa não tinha essa distinção. Minha mãe era defensora da igualdade de gênero! Está aí uma pessoa que contribuiu com minha alfabetização de muitas maneiras, principalmente dando bons exemplos. Ensinou-me a respeitar as pessoas, independente de qualquer coisa, ensinou-me que todos somos iguais e ao mesmo tempo temos diferenças e isso não faz ninguém melhor ou pior. Infelizmente, nosso tempo juntas, aqui neste plano terrestre, foi curto. Mas foi suficiente para deixar ensinamentos profundos e uma saudade gigante. A vida segue seu curso com esta saudade e lembrança. 
     Certa época do ano, minha família e eu nos mudamos para outro bairro, um pouco afastado da escola, mas de fácil acesso. A partir daí, eu ia para escola com a professora Berenice. Ela também morava nesse bairro. Minha mãe me levava até a casa dela e, de lá, seguíamos a pé, a professora e eu. E eu adorava! 
     Na segunda série, troquei de escola, para uma mais perto de casa. Lembro que tive uma crise de choro no primeiro dia de aula, porque eu não sabia nada de segunda série! Medo do novo! Do desconhecido! Mas passou, e continuei bem faceira! 
      Recordo os passeios ao zoológico, as festinhas na sala de aula, aquelas que cada um leva um prato e minha mãe fazia bolo de chocolate, enfeitado com balinhas coloridas e o prato sempre voltava vazio. Recordo também de uma professora substituta, Bianca era o nome dela, que nos levou para conhecer um acampamento indígena ( que na ocasião estava em Guaíba) e num outro passeio, fomos conhecer um grupo de escoteiros. Depois desse passeio queria ser uma escoteira a todo custo! 

    Gostava muito de brincar de professora, tinha quadro, giz e muitos papéis. Passava horas brincando sozinha, na minha sala de aula imaginária. Embora gostasse de ler, sentia frio na barriga toda vez que tinha teste de leitura, em voz alta, na escola. 
    Atualmente, estudando as alfabetizações de mundos, percebo o quanto todas as vivências de uma criança são importantes e principalmente marcantes na aprendizagem, que alfabetizar vai além da compreensão sonora, ou da junção de letras que formam uma sílaba, que formam palavras. Tudo é alfabetização. Os exemplos dos pais, o jogo que o menino aprendeu na rua com os amigos ,o banho de chuva, o pacote de bolacha dividido ao meio, metade tua, metade da prima, o segredo que a menina escreveu no diário.“Alfabetizações de Mundos”, um olhar expandido para além das linhas do caderno!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Bruna P.Zitzke

                               Alfabetização e memórias                                                                                                               
Inicio estas lembranças com a alegria de quem encontra uma caixa de fotos, cadernos e brinquedos da infância. Um tesouro assim é bastante valioso, mas não se equipara a recordação de momentos importantes em nossas vidas como o período em que fomos alfabetizados. Penso que tudo o que aprendemos tenha sido, em algum momento da história, vivido e aprendido também por pessoas que nos antecederam em nossas famílias: nossos pais, tios, avós, bisavós e assim por diante. Por isso, para falar sobre o meu processo de alfabetização, precisei redesenhar o caminho escolar que minha família percorreu antes de mim, e compreender as muitas maneiras nas quais estes caminhos se entrelaçam aos meus próprios. 

A referência mais antiga que tenho sobre a alfabetização em minha família é a da minha avó materna, que aprendeu a ler já em idade avançada. As únicas palavras que escreveu na vida foram seu nome e sobrenomes. Não fazia qualquer operação matemática. Disse-me, um dia, que aprendera a ler “lendo”. Quando ia à nossa casa nos visitar, onde eu morava com meus pais, se dirigia à estante de livros e observava, calmamente, seu pequeno acervo. Pegava um livro, folheava, observava por minutos e até horas, cada detalhe, a capa, as imagens. Se encontrava uma lupa em cima da mesa, esquecia do tempo admirando a grandeza das letras pelo efeito da lente. Eu desfrutava esses momentos com ela, tendo todo o respeito a uma pessoa que, em silêncio, lê. Entrava sem fazer barulho na sala e aguardava a conclusão daquelas leituras tão expressivas na face enrugadinha da minha avó. Anos depois, ela contoume, comovida, que aquele foi um período muito especial da sua vida, pois ali ela estava aprendendo a ler: - Quem me ensinou não foi ninguém. Quem me ensinou a ler foram os livros…. 

Sim. Ela observava as letras e palavras que já conhecia, os nomes dos filhos, de marcas de produtos que consumia, procurava algum sentido nas frases, nos sons… Lia livros de receitas, romances, livros didáticos e, principalmente, sobre lugares do mundo e a imensidão das belezas naturais da Terra. Lembro da sua expressão de surpresa ao reconhecer o nome da sua cidade natal no mapa do Rio Grande do Sul: - Pi-ra-ti-ni! Mas quantos ‘is’! 

Pois bem. Vó Diva, como era conhecida, uma índia guarani vinda lá das fronteiras uruguaias, ensinou-me pelo exemplo a ser ‘cúmplice’ da leitura. A ter um livro em mãos não como quem porta algumas gramas de papel impresso, mas como quem tem a chave de um portal que leva a lugares fantásticos, cheio de criaturas e histórias que meu ser de 4 anos estava aprendendo a descobrir.

Afirmava a todos a importância do estudo, e se irritava quando precisava acompanhar a lição de casa dos netos, pois sua escolaridade a limitava. Dizia que eu teria jeito pra leitura. E que me dedicasse a ”olhar bem as palavrinhas” para que, quando aprendesse a ler, pudesse ler, para ela, as notícias do jornal diário. Ela falava sobre “ler o mundo’’, sobre a capacidade que temos de aprender a partir do aprendizado do outro, sobre o poder do conhecimento para “desamarrar’’, nas pessoas, “as coisas que o mundo grande nos faz acreditar’’, dizendo na simplicidade das suas poucas e rudes palavras, que o processo de aprender a ler e escrever vai muito além de se aprender o alfabeto. Mas abre portas. Dá-nos a oportunidade de percorrer esta vida com alguma experiência na bagagem, com algum entendimento dos processos que se desenrolaram até o momento presente. E, principalmente, empodera-nos com o dom da expressão das emoções, sentimentos e intenções a partir da linguagem escrita. 

Contei tudo isto porque o meu processo de alfabetização começou bem antes do meu contato com o lápis e o caderno. Como em tudo na vida, as nossas raízes se fazem presentes também, e o contexto familiar e cultural em que chegamos ao mundo tem uma importância incontestável. 

Durante as aventuras da minha avó materna no universo literário do meu pai, este, que na época era policial civil e acabara de ser aprovado no curso de Licenciatura em Geografia pela Fundação Universidade de Rio Grande, vivia um período de muito estudo, intercalado com o trabalho, os cuidados com o jardim da casa e nosso pequeno pomar, a missão 24h de marido e pai, e os estágios nas escolas de Ensino Fundamental. Havia um programa de incentivo à leitura, promovido pelas Secretarias de Educação – não sei ao certo se municipais ou estadualem que era distribuído uma grande quantidade de livros infantis gratuitamente nas escolas públicas. Cada criança ganhava 5 ou 6 livros no início de cada bimestre. Meu pai, então, em uma atitude desonesta mas bem intencionada, quando percebeu que os malotes continham mais livros que alunos, furtou, bondosamente, os livros excedentes e os deu a mim. Colou um adesivo colorido em cima do carimbo das secretarias e alegremente lia, para mim, antes de dormir. Bom, em verdade, nem sempre tão alegremente, pois eram tempos difíceis. 

Nossa casa de dois cômodos abrigava a mim, meu pai e minha mãe e os animais abandonados que adotávamos temporariamente, principalmente no inverno. Eu contava histórias a eles (os animais) quando meu pai precisava estudar. Eles ouviam atentamente – ao menos, eu acreditava que sim. Mas preferia, claro, que alguém lesse para mim, e possivelmente, vez ou outra, chantageava meus pais na tentativa de ganhar uma leitura antes de dormir. Às vezes, ganhava a disputa e as histórias escolhidas eram sempre as mesmas, dos livros com ilustrações mais coloridas, e histórias que mais pareciam poemas. 

Pois bem. Tal qual a história de minha avó, eu olhava as palavras enquanto ouvia o som delas, e memorizava a voz da minha mãe citando e cantando aqueles versos. Sim, eu acreditava que os livros produziam algum tipo de música, e que, se os deixasse abertos por muito tempo, as personagens e criaturas ilustradas ganhariam vida.. então, guardava muito bem cada livrinho, e cuidava deles como quem zela de um tesouro. 

Um dia, voltando para casa de ônibus, em uma viagem longa e vagarosa (para uma criança pequena tudo é tão imenso!!), estava eu com 4 anos vividos, chorando e reclamando de frio e fome, e minha mãe tirou da bolsa um livro. Era um dos meus preferidos, que ela mesma sabia de cor. A história e a ilustração ficaram na memória até hoje. Se chamava ‘’Fofa Fofinha’’, e contava a história de uma nuvem que estava insatisfeita com sua condição de nuvem e, entristecida com a situação de poluição e guerras que a humanidade provocara no mundo, resolveu viajar, até se encostar no “Pão de Açúcar’’ e virar algodão doce! E foi na inocência dessa história que eu aprendi a reconhecer o som das palavras. Ali mesmo, no ônibus, no meio do cotidiano cansado e frio, conta minha mãe que eu ‘’li’’ todo o livro. Algumas pessoas próximas questionaram minha mãe sobre a precocidade da minha escolaridade. Mas eu não havia lido, verdadeiramente, apenas recitado aquela história que havia ouvido tantas e tantas vezes, reconhecendo os versos que acompanhavam cada ilustração. 

Assim, minha família viu na leitura uma oportunidade de “entretenimento’’ para ocupar minha curiosidade enquanto cumpriam seus afazeres domésticos e, principalmente, quando eu precisava passar o dia com eles no trabalho. Os livros foram os mesmos durante anos. Alguns gibis e um ou outro exemplar se somaram à pequena coleção. Aquele era meu material de estudo, companheiros de papel para os dias chuvosos e frios, de ventanias e temporais, dias de passagem do vento Minuano em que só o que se pode fazer é ficar em casa e esperar passar. Quando o tédio batia, meus pais me pediam uma história. E eu lia, com atenção, pra lembrar bem das poesias expressas naqueles sons, palavras e imagens. 

Gradualmente fui me rodeando de palavras. Aprendi logo a recortar com a tesoura e deixava meu pai de cabelo em pé, recortando seus livros e documentos a toda hora. Também colava as letras recortadas pela casa, na intenção secreta de não esquecer as letras que aprendia. Me causava um misto de estranhamento e fascínio a quantidade de formas, cores e tamanhos que as letras podiam ter dependendo do contexto. Frequentei várias creches, escolinhas e grupos de cuidadoras no bairro que morava, e em quase todas as situações, era uma das crianças mais novas. E em algum momento do dia, as crianças faziam seus deveres de casa. Eu, menor, pegava um papel qualquer e ali escrevia qualquer coisa que, para mim, era um dever de casa também. Observava e absorvia o que faziam e repetia os movimentos. Elas me ensinavam e corrigiam minha falta de firmeza em segurar bem um lápis. Criança é um ser humano solidário em sua essência. E desta forma aprendia com elas, que foram (e são até hoje) meus professores em potencial. 

Também frequentei outros ambientes que foram tão importantes no meu letramento, mas que, comumente, não são associados à liberdade. Um deles era a delegacia em que meu pai trabalhava, como policial civil no departamento de documentação. Na minha visão de criança aquele era um ambiente fascinante. Nada opressor. Tinha papel. Muito papel. E canetas, muitas canetas! E, dentro da estratégia de entretenimento da minha pessoa, ganhava do meu pai pilhas de papéis de rascunho para desenhar, canetas e clipes de metal, ficando, de certo modo, quieta e ocupada, de modo que ele pudesse trabalhar sem que fosse advertido por levar uma criança para uma delegacia. Certa vez, cansei de desenhar e resolvi passear pelos espaços. Cheguei até a mesa de uma colega do meu pai, que estava conferindo as digitais dos documentos de Identidade. Ficamos conversando, enquanto ela me mostrava e explicava para que servia aquele pequeno documento. Fiquei curiosa com as assinaturas das pessoas, que mais pareciam desenhos que escritos. 

Descobri assim que cada pessoa tem um nome, mas que cada um também ‘’cria um desenho próprio’’ para falar o seu nome pela linguagem escrita. Oras, pensei, preciso também inventar o desenho do meu nome! Conheci uma a uma as letras do meu nome e em poucos dias aprendi o seu ‘’desenho’’, que escrevia com muito orgulho nas superfícies mais inusitadas – principalmente as paredes da casa. Nos momentos em que acompanhava os deveres de casa das outras crianças nas escolinhas e creches, esta era minha meta de estudo: escrever meu nome. Ponto. E também imitar os movimentos de escrita que via as crianças fazendo. Observava o exercício de repetir um mesmo movimento com o lápis. Um tracinho caído para a esquerda, círculos, ondinhas, zigue-zague… até o fim da linha do papel. Em algum momento, alguém me presenteou com um caderno e eu passei a ‘’brincar’’ com este exercício em várias situações. Era divertido aprender a manusear o lápis dessa maneira. 

Um dia, pedi à minha mãe que inventasse outros tracejados para eu ‘’estudar’’. Ela pegou meu caderno e riscou alguns. Eu revidei, dizendo com sinceridade de criança que não estavam bonitos como os traços da professora da escolinha . Ela apagou e fez outros, com grande esforço. Anos depois, ela mesma contou-me sobre seu próprio processo de alfabetização. Disse-me que fora alfabetizada próximo aos 8 anos, pois sua realidade social foi mais permissiva para o trabalho do que para os estudos. As irmãs mais velhas estudavam e cuidavam da casa. Ela cuidava dos irmãos menores enquanto minha avó trabalhava na lavoura de tabaco. Aprendera o básico em casa, com as irmãs, brincando de escola tendo o chão de terra batida como lousa e um galho de planta como giz. Quando, enfim, chegou à escola, se realizou. Menos por um detalhe: era canhota, e sua professora do primário não aceitava que alguém pudesse escrever com a mão esquerda. Usava a humilhação, a palmatória e castigos como “métodos’’ de podar este ‘’mau costume’’. Por esta razão, minha mãe aos poucos foi perdendo a autoconfiança e determinação em aprender. Quando tinha dever de casa, fazia-o escondido. Tinha vergonha da própria letra, e dificuldade de segurar um lápis com firmeza, já que escrever com a mão direita não fazia parte da natureza do seu ser. E esta insegurança se projetou para a leitura e outras questões, principalmente no tocante a qualquer processo de aprendizagem. Sentia-se incapaz de aprender coisas novas. Completou o Ensino Fundamental, repetindo algumas séries. Desistiu do Ensino Médio para se dedicar a estudar para concursos públicos. Passou na seleção para Serviços Gerais da FURG e somente anos depois concluiu o Ensino Médio no formato de Supletivo. E transformou esta e outras dores, em luta política por causas sociais, defendendo o direito de acesso das minorias à educação e qualidade de vida. 

E foi neste contexto que uma amiga militante, que havia concluído recentemente o curso de Pedagogia na mesma universidade em que meu pai estudava e que também minha mãe trabalhava, montou um pequeno Jardim-de-Infância em nosso bairro. A escola era, na verdade, a garagem grande da sua casa. Tinha um pátio enorme, um cachorro no quintal e um vídeo-game que podíamos usar quando nossos pais se atrasavam ao fim das aulas. Mas o mais impressionante era o tamanho da sua dedicação em acolher a todos. Minha lembrança dessa mulher é de um ser amoroso e paciente, que ria conosco das nossas conclusões espontâneas de crianças sobre os fatos da vida. Movimentava ações sociais no bairro, entre as famílias, fazia campanhas de arrecadação de brinquedos, livros e roupas no inverno para agasalhar bem as crianças mais carentes a quem ensinava. Estas chegavam na escola-casa muitas vezes com fome, e ela recebia-nos com música e uma grande bacia de pipoca. Ensinou-nos, além do alfabeto, a acolher o outro com o coração, a respeitar o modo de ser de cada um, exaltando o que cada criança tivesse de maior potência dentro de si. Seu nome era Ester. 

Sobre a sua didática pouco recordo. Lembro da sala cheia de cores e do quintal cheio de plantas. Da “tia’’ Ester me ensinando a recitar poesia para a apresentação do dia das Mães e lendo os livros que eu levava para a escola. E de fazer todos os dias os mesmos exercícios que fizera nas escolinhas: escrever repetidamente traços e círculos no papel, até o fim da linha… E também do seu marido e filha que, vez ou outra, “invadiam’’ a escola para nos ensinar algo: amarrar cadarços, trançar o cabelo, apontar lápis, organizar a mochila, usar garfo e faca nas refeições, pintar “dentro da linha’’, recortar seguindo o pontilhado, pular elástico, plantar feijão. Ele aparecia de surpresa, cantando, e nos ensinava algo de bom pra levar para a vida toda. 

Chegou, pois, o primeiro ano, ou primeira série. Com muito esforço meus pais conseguiram uma bolsa de estudo no Colégio São Francisco, do grupo Marista. Ano de 1991, eu então com 6 anos, iniciei oficialmente o Ensino Fundamental. A escola, que até hoje é referência em ensino no município, acolhia, naquele ano, três turmas de primeira série. Eu e mais alguns trazíamos conosco a experiência vivida no Jardim-da-Infância. A maioria das crianças, no entanto, entrava pela primeira vez em uma escola, onde passaria metade do dia. Nesse sentido, os primeiros meses foram dedicados a acolher e trabalhar a segurança nos colegas que estavam pela primeira vez frequentando um espaço escolar. Na turma havia uma média de 30 crianças, a maioria de famílias de classe média-alta, inseridas em um contexto muito mais amplo que o daquela escolinha na garagem da casa da professora do Jardim. Estava na “escola das crianças grandes’’, cheia de salas de aula ao redor de um pátio tão grande que os olhos pequenos de criança não alcançavam o fim. Logo na primeira semana me perdi várias vezes no caminho de volta ao banheiro, pois as salas de aula eram aparentemente todas iguais, nos mesmos formatos, cadeiras enfileiradas e crianças igualmente vestidas com seus uniformes verdes. Em algumas semanas, descobri que os frades que zelavam da escola eram bons amigos. O prédio da escola era muito antigo e muito, mas muito frequentado pelos pombos da cidade. Os frades ensinavam-nos que devíamos respeitá-los: a eles e aos pombos; e repetiam os preceitos franciscanos diariamente como parte de uma alfabetização espiritual ou filosófica que desejavam compartilhar. Eu acreditava que fora o próprio São Francisco de Assis que fundara a escola e convidara os pombos todos da cidade a irem ter os telhados da escola como abrigo. Imaginava que, tal como as pessoas, houvesse em algum lugar uma escola para estas aves. Me sentia estudando em um grande castelo, cheio de lugares secretos, como a sala do piano, onde nos escondíamos para desvendar algum mistério que inventávamos. 

Desenhávamos mapas de tesouros (que geralmente eram representados por sementes ou pedras) nas últimas folhas do caderno. Todos os dias a professora fazia a chamada dos alunos presentes, e os nomes dos colegas ausentes eram escritos em um canto colorido do quadro, para que ficassem de certa forma presentes para nós. Lembro de poucas situações em que não houvesse pelo menos uma criança chorando. Não havia nenhum tipo de assistente em sala e a professora, como dizem “se virava nos trinta’’, nos quarenta ou em quantos fosse possível. Em verdade, ela passava alguns ‘’sufocos’’. Quando, enfim, o silêncio pairava na sala, ela suspirava fundo e cantava para a turma uma música do repertório marista. Também cantávamos o hino nacional todos os dias e rezávamos uma prece ao início da aula. Cantar e brincar não era proibido, mas os momentos de ludicidade eram poucos. Sua dedicação diária estava em “conter’’ as crianças mais ‘’rebeldes’’ (por vezes, com auxílio do frei superior) e em ensinar-nos a desenvolver a coordenação motora para, mais tarde, aprender a escrever. Enquanto isso, um alfabeto colorido mas muito antigo, decorava a sala de aula no alto do quadro de giz. 

Quando chegava em casa, geralmente em noites bem frias, montava, em algum canto da casa uma pequena escolinha. Tinha um pequeno quadro de giz onde “ensinava’’ às minhas bonecas e pelúcias, o que aprendera na escola. Letras de todos os tamanhos e formas, tracejados e qualquer coisa relevante naquele momento, tendo o cuidado de ensinar com mais dedicação às bonecas menores e aos animais, principalmente meu cachorro. Tinha certeza de que eles estavam tão empolgados quanto eu neste processo. 

Os exercícios de coordenação motora fina eram os mesmos do Jardim-de-Infância, e treinados com as crianças maiores desde as creches: repetição dos tracejados, círculos, ziguezagues…. Até o fim da linha. Todos os dias. Acabava o caderno, ganhava outro para seguir fazendo o mesmo. Quando a turma se dispersava em uma atividade, entregava a cada um uma folha com o mesmo exercício, impressa em um mimeógrafo. O cheiro da folha recém impressa inspirava o novo. Mas o exercício para mim já era velho, não tinha mais a mesma emoção que no início e eu, por vezes, chorava em ter que fazê-lo sob a ameaça de ficar sem recreio ou outra perda possível. 

Com o tempo, entretanto, meus pais perceberam que passei a demonstrar uma certa resistência em ‘’desenhar as palavras’’, como assim eu chamava a escrita. Não tinha mais paciência em fazer os tracejados ou, quando tinha, fazia com pouco ou nenhum capricho. Meu pai foi, então, à escola, questionar e conversar com minha professora sobre a questão desse tipo de exercício diário e repetitivo estar se tornando exaustivo para mim, e atrapalhando o processo natural da minha alfabetização. Ou talvez ele tenha se dirigido a ela com a afirmação de que eu não faria mais deveres de casa e ponto final. É possível, também. O fato é que, durante os meses seguintes, as minhas atividades escolares mudaram. Tínhamos mais colorido nos cadernos e na sala de aula. Os colegas que estavam iniciando a jornada da escolaridade estavam mais ‘’calmos’’ e participativos, e a professora já gritava menos. Eu fazia um grande esforço em manter o mesmo entusiasmo, pois entendia, minimamente, que a oportunidade de estudar naquela escola era como encontrar um tesouro no fundo do mar. Mas ali, naqueles tempos já nos primeiros anos, as circunstâncias do ambiente escolar me fizeram perceber que no mundo ‘’dos adultos’’ havia (e há!) todo tipo de opressão, das mais sutis às mais escancaradas. Que é possível subtrair aos poucos a coragem de uma criança ser ela mesma, de assumir seu papel no mundo enquanto adulto e que o medo e a insegurança pessoal resultante de todo esse processo pode ser usado como um intrumento de poder político, inclusive. 

Anos depois, já tendo atingido as vésperas da idade adulta, conheci uma terapeuta vocacional com quem dividi todos estes relatos. Trouxe a mim histórias de casos semelhantes, e apontou a ligação de alguns fatos com o momento que vivia: “ansiedade nível máximo’’ e “memorização nível mínimo’’. Estudar me deprimia, livros longos e em preto-e-branco me desestimulavam e, principalmente, perdia a paciência rapidamente se precisasse escrever um texto longo ou ficar mais de trinta minutos estudando matemática. Escrever era prazeroso, mas ao mesmo tempo causava certa irritação. Pois o que para mim era um grande e irritante mistério, para ela era simples de entender, pois em sua carreira encontrou várias pessoas da minha geração, com os mesmos contrastes, e histórias de vida semelhantes. Aconteceu comigo o que aconteceu e vem acontecendo com várias crianças por todos os lados do mundo: em pleno processo do despertar para o universo das linguagens, a maioria de nós é obrigada(o) a se “enquadrar’’ em um modelo de ensino que não respeita o tempo e o desenrolar das descobertas da sua própria capacidade de aprender. Precisam estar, simultaneamente prontos, para receber as enxurradas de informações e absorvê-las ao máximo, do jeito que puderem. 

Um dia, conversando sobre esses assuntos com meu pai, que depois de muitas experiências intensas em sua carreira de policial, formou-se em Geografia e fez Mestrado em Educação Ambiental, desgarrando-se da polícia para seguir a carreira de docente no Norte do país (levando eu e meu irmão a experienciar essas andanças consigo), lembramos da minha professora do primário. Ele contou-me algo fascinante: sua visão de pai sobre a sala de aula e o modelo onde estávamos todos inseridos, eu, as outras trinta e poucas crianças e a professora. Esta, uma jovem professora do interior do Rio Grande do Sul, de raízes e sotaque germânicos, viveu muitos desafios em seu ambiente de trabalho. A ela, o processo também era opressor. Sei disto porque hoje, aos 31 anos, tendo encontrado na Educação um caminho para ajudar na transformação do mundo e na minha própria, compreendo bem o que esta jovem professora passava diariamente. Há que se ter muito amor e muita fé nesta profissão e nesta missão de despertar nos seres humanos em formação a infinita potência criadora e aprendiz que todos carregamos. E muita paciência neste modelo que formatou os processos de ensinagens em um padrão quase industrial, visando aparentemente, a produção de cidadãos-padrão facilmente manipuláveis. 

 Nesta mesma conversa, falamos sobre os mestres que nos inspiraram à vida, e meu pai perguntou-me duas coisas. A primeira me fez rir. A segunda, quase a chorar. Iniciou, em uma brincadeira, questionando-me se eu havia perdoado a “tia Gisele’’, minha professora do primário, por ter retirado os lápis-de-cor das atividades de escrita, deixando-os restritos apenas às atividades de “colorir’’. Recordei ali, que a transição entre o primeiro e o segundo ano do Ensino Fundamental foi marcada, também, pela ausência das cores nos cadernos e folhas de atividades impressas nos mimeógrafos. Simbolicamente, é possível comparar estas mudanças a outras viradas e mudanças radicais vivenciadas pelos aprendizes, que passam desavisados como quem é surpreendido por uma onda gigante. Mas o detalhe é que ninguém os prepara pra isso, mas todos seguem superando e atravessando o processo de aprender mesmo com a dureza que muitas vezes o sistema oferece. 

A sorte das crianças é que elas têm colorido por dentro, arco-íris nos olhos e umas faíscas de esperança que vêm lá de não sei onde e perigosamente contaminam os desesperançosos de mudanças, espalhando pelos arredores com uma fé no futuro de alto contágio. Isto me fez lembrar da segunda pergunta do meu pai. Ele disse: filha, que é a Esperança? A que ele mesmo respondeu rapidamente, trazendo à memória a definição do mestre Paulo Freire, que transcrevo aqui: ‘’é preciso ter esperança. Mas tem de ser esperança do verbo esperançar… Esperança do verbo esperar não é esperança, é espera… Esperança é ir atrás, é se juntar, é não desistir. É ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa capacidade de integridade e a nossa fé ativa nas obras. Esperança é a capacidade de olhar e reagir àquilo que parece não ter saída…’’ 

Meu processo de alfabetização neste mundo se deu pelo exercício desta esperança. Desde os primeiros traços até o momento em que digito estas palavras. Desde o tempo em que tinha a certeza de criança de que seria uma ‘‘salvadora de animais’’, astronauta e professora de Ciências nas horas vagas, até o momento presente, eu Bruna, educadora, bióloga, brinquedista, inventadora, e mais uma porção de coisas que sou e sei, mais aquelas que sou e não sei ainda, eu tenho esperançado. E esperançarei tanto quanto for possível nessa estrada infinita de possibilidades e modos de caminhar que é a Educação. 

Acredito nesta esperança ativa e me volto para a criança, esperançosa por natureza, a quem conjugo na terceira pessoa do tempo presente: ela, esperança. 

Porto Alegre – RS; 14 de fevereiro de 2017.

Profª Norma Farias da Silva

        Memórias da minha alfabetização 
                                                                       
     Recordo-me da minha irmã, iniciando a me ensinar a ler e a escrever, sete anos mais velha. Montávamos os bancos, no meio do quintal. Escola infantil, antes do primeiro ano, nem sabia que existia. Nós cantávamos, declamávamos, e aprendíamos as primeiras letras, lá na nossa Vila Palmira, em São Paulo, todos com poucos recursos, mas com muita vontade de ingressar na escola. Acredito que a alfabetização aconteceu um ano antes do nosso ingresso, falo assim, porque não me enxergo sozinha, eram os vizinhos, os primos e quem chegasse. Quando se iniciava o ano, estávamos todos sabendo ler e escrever, pensava que todos tinham conseguido. 
     Minha mãe me acompanhou no primeiro dia de escola. Estava muito feliz. Minha professora se chamava Dona Ofélia. Não dei trabalho, consegui acompanhar, graças à boa vontade de minha irmã. A escola era rígida, com falas assim, “barriga pra dentro, peito pra fora”. Cantei o Hino Nacional durante todo ano, adorava. Ganhei presente por ter feito uma boa redação: “O homem na Lua”, escrevi que pensava que São Jorge morava lá. Recebi puxão de orelha, não conhecia os algarismos. Mas estava caminhando pela escola. 
     Hoje, percebo que vivi em plena ditadura militar, ingressei na escola em 1967, nem respirávamos em sala, nosso uniforme deveria estar sempre em ordem, o meu sapato estava furado, mas era engraxado. Mas era feliz, pois não sabia de nada. A escola tinha “a caixa”, minha mãe, orgulhosa, não admitia tirar um atestado de pobreza, para que eu ganhasse o material e a merenda e, às vezes, tinha uma fominha de doer, mas nem ligava - escola era o melhor lugar do mundo, pra mim. Lia gibis do Tio Patinhas, Mickey, Super Homem, e até Monteiro Lobato, que eram presentes de um menino lá da vila, que a mãe era doméstica e a patroa lhe dava. Apresentava-me, encenando, cantando, na escola. 
     Minha avó com sua simplicidade, dizia: - “escola é só prá ler e escrever, vai cuidar da casa, depois, faz a lição”. Não achava bom estar em férias, queria mais escola. Penso que a maneira que aprendi a ver o mundo era de controlar todas as necessidades, sem ninguém saber das dificuldades que passávamos. Aproveitei o que eles me ofereceram, não tinha consciência de nada e, tenho certeza, os que estavam comigo também. Havia crianças que, no meu modo de ver, eram bem tratadas, e eu fazia de conta que era uma delas, já estava no meio, e isto me bastava.

Profª Rosana de Moraes

     Memórias Afetivas de Alfabetização e Letramentos na Infância

                                                                           

                                                                                                          

 Primeiros processos de letramento:

      Meu primeiro contato com o letramento foi através dos rótulos de alimentos. Os saquinhos do leite Mi-Mi, que a mãe lavava e cortava para fazer cortininhas de plástico (lembro ainda do cheiro do leite), e as latinhas de leite Ninho, que nós “roubávamos” e nos afogávamos escondidos, porque era denso e trancava na garganta. Sabia de cor qual era leite em pó e qual o leite de saquinho.

Lembranças da escola:

       Da escola, lembro-me das cobrinhas e voltinhas. O cheiro da pasta misturado com os lápis de cor e pão, que eu levava de merenda e as letras A a – Abelha, B b – Bola. 
      Algumas vezes eu chorava, não queria que a mãe fosse embora, quem me acalmava era o senhor que cuidava do portão e me pegava pela mão. 
      Eu gostava, gostava muito de ir para a escola e cuidava do meu caderno para não criar orelhas. Faz muito tempo, minha memória falha, sei que em algum momento tinha o Alfabeto na parede e a frase: IVO VIU A UVA! 
      Na passagem da letra bastão para a cursiva, passei trabalho, não entendia o processo de emendar uma letra na outra, o bom e velho caderno de caligrafia me ajudou nessa etapa penosa.
      Gostava muito da hora da leitura, e ficava toda boba quando a sora chamava as “outras” para me apreciarem.

Sobre Ler e Aprender na Vida:

      Da alfabetização de mundo, tive ajuda do Pai, que sabia um pouco mais que a mãe e tinha um jeito especial de ensinar a divisão, o que, aliás, só fui entender que era o contrário da multiplicação, em casa, tendo ele como professor. Mas nem tudo eram flores, muito tomei cascudo por não decorar a tabuada, fazia voltas em torno da casa, e ai de mim, se ao chegar, o Pai fosse tomar a tabuada e eu errasse, lá vinha cascudo, às vezes, até uma surra.
      Sempre fomos da leitura lá em casa, o pai incentivava e comprava gibis e depois, na adolescência, comprava uns livros de romance, Julia ou Sabrina, que minha irmã e eu devorávamos... Ah, que tempo bom de lembrar! 
      Sobre leitura de rua, teve uma vez que estávamos no ônibus, o pai e eu, e olhei pela janela e disse: _olha que tri, pai, o esqueleto de ferro! Meu pai caiu na risada, primeiro, porque achou engraçado eu falar “que tri”, catarinense que era, e explicou que era o Monumento aos Açorianos, que só bem mais tarde fui entender a complexidade da escultura.
      Foram muitas e tantas, foram passeios de bici, idas ao Mercado Público, passeios nos Morros de Porto Alegre, excursão para o Lami e Belém Novo, enfim, uma infinidade de aprendências, que já nem lembrava, se não fosse por ter começado esse relato. 
      Gratidão ao velho Elio, meu pai, professor de vivências sem saber, sem eu saber que estávamos juntos nessa caminhada plena de letramento e alfabetização de mundos.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Profa. Alessandra Moreira

                                          Minhas memórias escolares                                              
     
      Quando dizem que o contexto histórico das vivências das crianças para a educação é importante, é incontestável. Eis que me deparo com minha própria história de vida e escolarização. Resolvi colaborar com os autores dessa área para comprovar e provar que é verdade. E que a educação tem muito a mudar, para que assim possa ser um instrumento de transformação da realidade das pessoas, vislumbrando dias melhores.
      Não fui para a Educação Infantil nos meus primeiros anos de infância. Apenas hoje sei que o direito à Educação Infantil é um imenso avanço que tivemos em função da Constituição de 1988. Se não me engano, entrei na escola na primeira série, entre 1988 e 1989, em uma escola em Pantano Grande, a 120 km de Porto Alegre.
      Lembro, claramente, de minha mãe nessa história de vida e escolarização. Ela saía de Pantano Grande bem cedo para pegar o ônibus na Rodoviária, numa viagem que dura em média duas horas e meia até Porto Alegre para fazer faxina. Retornava tarde de Porto alegre, muito tarde da noite. Esperávamos já dormindo. Os cachorros latiam avisando que a mãe chegara no meio da escuridão. Não havia luz elétrica. Chegava cansada, deitava-se e dormia. Pela manhã acordava cedo e saia para ir ate o armazém mais perto comprar mantimentos para os oito filhos. Não era todos os dias que fazia faxina, às vezes eram um dia sim, e outro não. A faxina era uma vez na semana e até uma vez no mês. Dependíamos das faxinas de minha mãe. Até que um dia conseguiu trabalho em um hotel de Pantano Grande. Hoje o nome do hotel é Cidade Nova. A dona era uma “gringa”, como desse modo era chamada. Minha mãe trabalhava como serviço geral e cozinheira. Os donos pagavam mal. Era uma exploração, devia receber um salário mínimo ou até menos. Tudo que sobrava dos restos de alimentos dos hóspedes minha mãe colocava em um baldinho e levava para casa, onde distribuía em partes iguais para todos os filhos. Muitas vezes, a comida tinha cheiro de cigarro e até tinha palito no meio. Comíamos bem felizes, sem reclamar. Por que reclamar, se a comida era saborosa, tinha carne, arroz, feijão, ovos e saladas? Coisa que muitas vezes não tínhamos em casa. 
     Minha mãe levantava cedo para trabalhar. Tomava um café preto gelado do dia anterior e saía. Sempre via a xícara dela com resto de café e muita açúcar no final em cima do fogão a lenha. 
      Eu ficava acendendo o fogão a lenha em casa, porque era expert em fazer fogo. Desde pequena conhecia a natureza, experimentava tipos de materiais da natureza para pegar fogo. Acredito que isso fez com que amasse o fogo, também gostava das cinzas que ficam no final de um bom fogo, o que fica depois dentro dos fogões, a lenha queimada. Simplesmente as coisas se tornam cinzas. 
      O mais difícil sempre era fazer isso em fogão a lenha em invernos rigorosos. Tínhamos que catar e armazenar lenhas e galhos no verão para que não viéssemos a ter problemas em nossos fogões a lenha. Muitas vezes, tínhamos que usar plásticos ou querosene. Na maioria das vezes, era o plástico o mais usado por mim, vivia com as mãos queimadas, pelo fogo que colocava no plástico que derretia e caía em minhas mãos. Vivia com as mãos queimadas, mas quentinha pelo aquecimento do fogão a lenha e tomava nosso café de cevada maravilhoso e, em seguida, saíamos, eu e meus irmãos para a escola. 
      Na escola, era um mundo à parte aprendíamos as letras, o alfabeto e as regras, e que regras! Minha mãe é de uma época que os estudantes tinham que respeitar os professores, sem questionamentos. Entregou-nos para as professoras. E disse: "Professora, se eles incomodarem pode botar de castigo". Imaginem se iríamos desobedecer. Eu, nunca! Naquela época ainda colocavam crianças de joelhos nos milhos como forma de punir. Lembro, claramente, de meu irmão Sandro de joelhos no milho na sala da diretora. Não pude fazer nada por ele. Quando saiu do castigo disse que ele deveria se comportar para que não o castigassem, mas meu irmão não me escutava. Não escutava a orientação da professora Jussara, e sempre se dava mal. Vamos dizer que nunca se adequou à escola, e, talvez, tivesse razão, naquele contexto. Naquele tempo histórico da educação, as coisas funcionavam assim, os professores eram um tipo de inquisidores da educação. Quem se submetia às regras e reproduzia o saber absoluto eram "os queridinhos". Os que não conseguiam, eram os desobedientes, os que não estudavam, os que não conseguiam aprender. Eram tachados de burros. Tenho certeza que quem começou com o bullyng foram as professoras, e isso se espalhou como exemplo para os estudantes praticarem com outros alunos.
        Nessa mesma escola e sala estudávamos eu e meus dois irmãos, Sandro e Nilza. Eles tinham entre 7 e 8 anos de idade. Eu acredito que tinha entre 9 e 10 anos de idade. Aprendia mais rápido o conteúdo, ao certo por ser mais velha, eu acho, não tenho certeza. Meus irmãos tinham muitas dificuldades no processo de alfabetização. 
       E por sermos muito pobres, minha mãe nos comprava um lápis e um caderno para durar o ano todo. Só que o material escolar que comprava era de péssima qualidade. Meus irmãos apontavam o lápis, que se quebrava todo. Em uma semana eles não tinham mais lápis. Eu cuidava muito bem do meu material escolar, apontava o lápis de uma forma que não quebrava a ponta para durar mais tempo. Quando a professora colocava o conteúdo no quadro, eu copiava o meu conteúdo no meu caderno, do meu irmão Sandro e depois da Nilza. Até a metade do ano foi assim. A professora deve ter descoberto que eu fazia, para meus irmãos, as atividades de escrever e responder. Disse à minha mãe que meus irmãos tinham dificuldades no processo de aprendizagem. Quis ajudá-los e os ferrei. Tentei de todas as maneiras ajudá-los. Eis, que neste mesmo ano, ambos fizeram provas no final de ano e foram reprovados. Foi a maior tristeza para mim, meus irmãos não seguiriam comigo no próximo ano, na mesma sala. Na mesma sala poderia protegê-los. 
       Minha memória segue viva nessas lembranças. Recordo bem quando minha mãe cobrava do meu irmão Sandro o tema de casa, e a utilizar o caderno de caligrafia. Quando o menino errava a letra em seu caderno, minha mãe batia com uma régua nos dedos dele. Eu pensava: o que uma analfabeta sabe sobre processo de alfabetização de crianças? Que horror! Pobre do meu irmão! 
      Sempre fui boa estudante, gostava de escrever e desenhar. Meu mundo de criança era quase só brincar. De brincar na escola e na minha casa. Na escola, pulávamos corda até nossos corpos perderem as forças. Minha casa era um casebre humilde, rodeado de mato em volta e uma sanga ao fundo. Corríamos divertidamente. Fazíamos corridas de saco, corrida de rua, cabra cega, pega-pega com meus tios Rogério e Luciane. Éramos muito felizes. Andávamos no mato criando nosso próprio mundo, o mesmo mundo que estou recriando com vocês. 
      Ouvíamos os pássaros debaixo de umas árvores. Repetíamos os cantos dos pássaros como se pudéssemos conectá-los conosco por meio da imitação de um assovio repetidas vezes. Eu não gostava de cortar as árvores para fazer lenha para o fogão. Saímos pelo mato catando gravetos, galhos e troncos de árvores secos caídos no chão para levar para casa quase todos os dias. Era possível encontrarmos cobras no caminho. Sempre morri de medo de cobras, minha mãe tem medo e eu também. Quando sonho com cobras, pode escrever que é inimizade. Observava a natureza, as folhas nas árvores, os pássaros, o céu, as estrelas, o sol, a noite, o vento, a chuva, o inverno e o verão. 
      No verão, à noite, em Pantano Grande, era o que tinha de melhor. A lua brilhava sobre nós. Com meus irmãos e tios sentados em frente à nossa humilde casa, ficávamos noites inteiras conversando sobre fantasmas, o céu, as estrelas e a lua. Contávamos, incansavelmente, as estrelas, sempre nos perdíamos na contação. Acreditávamos, piamente, que na lua estavam o burrinho, menino Jesus, Maria e José. Santa ignorância. Eu, sempre duvidei. Sempre fui metida a saber tudo, porque sempre duvidava das explicações desse tipo de história. Minha mãe sempre dizia: A Alessandra é metida a sabichona. Eu, sempre petulante. Explicava de forma astuta. Mãe: "não será porque eu estudo e aprendo rápido"? Minha mãe ficava furiosa. Logo emendava uma ordem: "Vai lá, sabichona, cuidar das tuas tarefas". Lá eu ia. Eu era a mais velha tinha que ser exemplo para meus irmãos. 
      Minha mãe dizia: "-Alessandra, vai buscar leite no leiteiro, vai buscar o querosene no posto de gasolina que está faltando para o lampião, vai buscar lenha para o fogão (eu dizia: mais lenha mãe? Ela dizia: você não sabe o dia de amanhã), vai cuidar dos teus irmãos". Por final minha mãe só faltou me pedir para acabar com a Guerra do Golfo. A Guerra do Golfo começou quando o presidente iraquiano Saddam Hussein acusou o Kuwait de praticar uma política de super-extração de petróleo, causando uma queda nos preços e prejudicando a economia iraquiana. Saddam também ressuscitou problemas antigos e exigiu indenização. Como o Kuwait não aceitou, foi invadido por tropas iraquianas. Motivo esse que proporcionou a entrada dos EUA nesse entrevero. Minha mãe acreditava que o Saddam ia invadir o Brasil e, em especial Pantano Grande. 
      Voltando ainda à minha mãe, ela me mandava buscar querosene para o lampião no posto de gasolina que ficava a 5km da nossa casa. Levava um recipiente, que era para trazer cheio de querosene. Isso acontecia em dias de tempo bom. No entanto, no inverno, voltava com o recipiente com a metade do querosene. No caminho, ia experimentando em poças de água o querosene. O querosene em contato com água faz lindos coloridos, criava arco- íris. 
       Quando chegava em casa com a metade do querosene, ela queria me matar. Acredito que, quando crianças, os lugares e sua casa são super longe. Quando criança parece que os lugares são distantes e cansativos de chegar. Para eu caminhar longos caminhos, criava Odisseias e IIíadas para chegar no destino. Até hoje, odeio caminhar longos percursos por conta dessas histórias. Gosto mesmo é de correr e pular corda.