Alfabetização e memórias
Inicio estas lembranças com a alegria de quem encontra uma caixa de fotos, cadernos e
brinquedos da infância. Um tesouro assim é bastante valioso, mas não se equipara a
recordação de momentos importantes em nossas vidas como o período em que fomos
alfabetizados. Penso que tudo o que aprendemos tenha sido, em algum momento da história,
vivido e aprendido também por pessoas que nos antecederam em nossas famílias: nossos
pais, tios, avós, bisavós e assim por diante. Por isso, para falar sobre o meu processo de
alfabetização, precisei redesenhar o caminho escolar que minha família percorreu antes de
mim, e compreender as muitas maneiras nas quais estes caminhos se entrelaçam aos meus
próprios.
A referência mais antiga que tenho sobre a alfabetização em minha família é a da minha avó
materna, que aprendeu a ler já em idade avançada. As únicas palavras que escreveu na vida
foram seu nome e sobrenomes. Não fazia qualquer operação matemática. Disse-me, um dia,
que aprendera a ler “lendo”. Quando ia à nossa casa nos visitar, onde eu morava com meus
pais, se dirigia à estante de livros e observava, calmamente, seu pequeno acervo. Pegava um
livro, folheava, observava por minutos e até horas, cada detalhe, a capa, as imagens. Se
encontrava uma lupa em cima da mesa, esquecia do tempo admirando a grandeza das letras
pelo efeito da lente. Eu desfrutava esses momentos com ela, tendo todo o respeito a uma
pessoa que, em silêncio, lê. Entrava sem fazer barulho na sala e aguardava a conclusão
daquelas leituras tão expressivas na face enrugadinha da minha avó. Anos depois, ela contoume,
comovida, que aquele foi um período muito especial da sua vida, pois ali ela estava
aprendendo a ler: - Quem me ensinou não foi ninguém. Quem me ensinou a ler foram os
livros….
Sim. Ela observava as letras e palavras que já conhecia, os nomes dos filhos, de marcas de
produtos que consumia, procurava algum sentido nas frases, nos sons… Lia livros de receitas,
romances, livros didáticos e, principalmente, sobre lugares do mundo e a imensidão das
belezas naturais da Terra. Lembro da sua expressão de surpresa ao reconhecer o nome da sua
cidade natal no mapa do Rio Grande do Sul: - Pi-ra-ti-ni! Mas quantos ‘is’!
Pois bem. Vó Diva, como era conhecida, uma índia guarani vinda lá das fronteiras uruguaias,
ensinou-me pelo exemplo a ser ‘cúmplice’ da leitura. A ter um livro em mãos não como quem
porta algumas gramas de papel impresso, mas como quem tem a chave de um portal que leva
a lugares fantásticos, cheio de criaturas e histórias que meu ser de 4 anos estava aprendendo
a descobrir.
Afirmava a todos a importância do estudo, e se irritava quando precisava acompanhar a lição
de casa dos netos, pois sua escolaridade a limitava. Dizia que eu teria jeito pra leitura. E que
me dedicasse a ”olhar bem as palavrinhas” para que, quando aprendesse a ler, pudesse ler,
para ela, as notícias do jornal diário. Ela falava sobre “ler o mundo’’, sobre a capacidade que
temos de aprender a partir do aprendizado do outro, sobre o poder do conhecimento para
“desamarrar’’, nas pessoas, “as coisas que o mundo grande nos faz acreditar’’, dizendo na
simplicidade das suas poucas e rudes palavras, que o processo de aprender a ler e escrever vai
muito além de se aprender o alfabeto. Mas abre portas. Dá-nos a oportunidade de percorrer
esta vida com alguma experiência na bagagem, com algum entendimento dos processos que
se desenrolaram até o momento presente. E, principalmente, empodera-nos com o dom da
expressão das emoções, sentimentos e intenções a partir da linguagem escrita.
Contei tudo isto porque o meu processo de alfabetização começou bem antes do meu contato
com o lápis e o caderno. Como em tudo na vida, as nossas raízes se fazem presentes também,
e o contexto familiar e cultural em que chegamos ao mundo tem uma importância
incontestável.
Durante as aventuras da minha avó materna no universo literário do meu pai, este, que na
época era policial civil e acabara de ser aprovado no curso de Licenciatura em Geografia pela
Fundação Universidade de Rio Grande, vivia um período de muito estudo, intercalado com o
trabalho, os cuidados com o jardim da casa e nosso pequeno pomar, a missão 24h de marido e
pai, e os estágios nas escolas de Ensino Fundamental. Havia um programa de incentivo à
leitura, promovido pelas Secretarias de Educação – não sei ao certo se municipais ou estadualem
que era distribuído uma grande quantidade de livros infantis gratuitamente nas escolas
públicas. Cada criança ganhava 5 ou 6 livros no início de cada bimestre. Meu pai, então, em
uma atitude desonesta mas bem intencionada, quando percebeu que os malotes continham
mais livros que alunos, furtou, bondosamente, os livros excedentes e os deu a mim. Colou um
adesivo colorido em cima do carimbo das secretarias e alegremente lia, para mim, antes de
dormir. Bom, em verdade, nem sempre tão alegremente, pois eram tempos difíceis.
Nossa casa de dois cômodos abrigava a mim, meu pai e minha mãe e os animais abandonados
que adotávamos temporariamente, principalmente no inverno. Eu contava histórias a eles (os
animais) quando meu pai precisava estudar. Eles ouviam atentamente – ao menos, eu
acreditava que sim. Mas preferia, claro, que alguém lesse para mim, e possivelmente, vez ou
outra, chantageava meus pais na tentativa de ganhar uma leitura antes de dormir. Às vezes,
ganhava a disputa e as histórias escolhidas eram sempre as mesmas, dos livros com
ilustrações mais coloridas, e histórias que mais pareciam poemas.
Pois bem. Tal qual a história de minha avó, eu olhava as palavras enquanto ouvia o som delas,
e memorizava a voz da minha mãe citando e cantando aqueles versos. Sim, eu acreditava que
os livros produziam algum tipo de música, e que, se os deixasse abertos por muito tempo, as
personagens e criaturas ilustradas ganhariam vida.. então, guardava muito bem cada livrinho,
e cuidava deles como quem zela de um tesouro.
Um dia, voltando para casa de ônibus, em uma viagem longa e vagarosa (para uma criança
pequena tudo é tão imenso!!), estava eu com 4 anos vividos, chorando e reclamando de frio e
fome, e minha mãe tirou da bolsa um livro. Era um dos meus preferidos, que ela mesma sabia
de cor. A história e a ilustração ficaram na memória até hoje. Se chamava ‘’Fofa Fofinha’’, e
contava a história de uma nuvem que estava insatisfeita com sua condição de nuvem e,
entristecida com a situação de poluição e guerras que a humanidade provocara no mundo,
resolveu viajar, até se encostar no “Pão de Açúcar’’ e virar algodão doce! E foi na inocência
dessa história que eu aprendi a reconhecer o som das palavras. Ali mesmo, no ônibus, no meio
do cotidiano cansado e frio, conta minha mãe que eu ‘’li’’ todo o livro. Algumas pessoas
próximas questionaram minha mãe sobre a precocidade da minha escolaridade. Mas eu não
havia lido, verdadeiramente, apenas recitado aquela história que havia ouvido tantas e tantas
vezes, reconhecendo os versos que acompanhavam cada ilustração.
Assim, minha família viu na leitura uma oportunidade de “entretenimento’’ para ocupar minha
curiosidade enquanto cumpriam seus afazeres domésticos e, principalmente, quando eu
precisava passar o dia com eles no trabalho. Os livros foram os mesmos durante anos. Alguns
gibis e um ou outro exemplar se somaram à pequena coleção. Aquele era meu material de
estudo, companheiros de papel para os dias chuvosos e frios, de ventanias e temporais, dias
de passagem do vento Minuano em que só o que se pode fazer é ficar em casa e esperar
passar. Quando o tédio batia, meus pais me pediam uma história. E eu lia, com atenção, pra
lembrar bem das poesias expressas naqueles sons, palavras e imagens.
Gradualmente fui me rodeando de palavras. Aprendi logo a recortar com a tesoura e deixava
meu pai de cabelo em pé, recortando seus livros e documentos a toda hora. Também colava
as letras recortadas pela casa, na intenção secreta de não esquecer as letras que aprendia. Me
causava um misto de estranhamento e fascínio a quantidade de formas, cores e tamanhos que
as letras podiam ter dependendo do contexto. Frequentei várias creches, escolinhas e grupos
de cuidadoras no bairro que morava, e em quase todas as situações, era uma das crianças
mais novas. E em algum momento do dia, as crianças faziam seus deveres de casa. Eu, menor,
pegava um papel qualquer e ali escrevia qualquer coisa que, para mim, era um dever de casa
também. Observava e absorvia o que faziam e repetia os movimentos. Elas me ensinavam e
corrigiam minha falta de firmeza em segurar bem um lápis. Criança é um ser humano solidário
em sua essência. E desta forma aprendia com elas, que foram (e são até hoje) meus
professores em potencial.
Também frequentei outros ambientes que foram tão importantes no meu letramento, mas
que, comumente, não são associados à liberdade. Um deles era a delegacia em que meu pai
trabalhava, como policial civil no departamento de documentação. Na minha visão de criança
aquele era um ambiente fascinante. Nada opressor. Tinha papel. Muito papel. E canetas,
muitas canetas! E, dentro da estratégia de entretenimento da minha pessoa, ganhava do meu
pai pilhas de papéis de rascunho para desenhar, canetas e clipes de metal, ficando, de certo
modo, quieta e ocupada, de modo que ele pudesse trabalhar sem que fosse advertido por
levar uma criança para uma delegacia. Certa vez, cansei de desenhar e resolvi passear pelos
espaços. Cheguei até a mesa de uma colega do meu pai, que estava conferindo as digitais dos
documentos de Identidade. Ficamos conversando, enquanto ela me mostrava e explicava para
que servia aquele pequeno documento. Fiquei curiosa com as assinaturas das pessoas, que
mais pareciam desenhos que escritos.
Descobri assim que cada pessoa tem um nome, mas que cada um também ‘’cria um desenho
próprio’’ para falar o seu nome pela linguagem escrita. Oras, pensei, preciso também inventar
o desenho do meu nome! Conheci uma a uma as letras do meu nome e em poucos dias
aprendi o seu ‘’desenho’’, que escrevia com muito orgulho nas superfícies mais inusitadas –
principalmente as paredes da casa. Nos momentos em que acompanhava os deveres de casa
das outras crianças nas escolinhas e creches, esta era minha meta de estudo: escrever meu
nome. Ponto. E também imitar os movimentos de escrita que via as crianças fazendo.
Observava o exercício de repetir um mesmo movimento com o lápis. Um tracinho caído para a
esquerda, círculos, ondinhas, zigue-zague… até o fim da linha do papel. Em algum momento,
alguém me presenteou com um caderno e eu passei a ‘’brincar’’ com este exercício em várias
situações. Era divertido aprender a manusear o lápis dessa maneira.
Um dia, pedi à minha mãe que inventasse outros tracejados para eu ‘’estudar’’. Ela pegou meu
caderno e riscou alguns. Eu revidei, dizendo com sinceridade de criança que não estavam
bonitos como os traços da professora da escolinha . Ela apagou e fez outros, com grande
esforço. Anos depois, ela mesma contou-me sobre seu próprio processo de alfabetização.
Disse-me que fora alfabetizada próximo aos 8 anos, pois sua realidade social foi mais
permissiva para o trabalho do que para os estudos. As irmãs mais velhas estudavam e
cuidavam da casa. Ela cuidava dos irmãos menores enquanto minha avó trabalhava na lavoura
de tabaco. Aprendera o básico em casa, com as irmãs, brincando de escola tendo o chão de
terra batida como lousa e um galho de planta como giz. Quando, enfim, chegou à escola, se
realizou. Menos por um detalhe: era canhota, e sua professora do primário não aceitava que
alguém pudesse escrever com a mão esquerda. Usava a humilhação, a palmatória e castigos
como “métodos’’ de podar este ‘’mau costume’’. Por esta razão, minha mãe aos poucos foi
perdendo a autoconfiança e determinação em aprender. Quando tinha dever de casa, fazia-o
escondido. Tinha vergonha da própria letra, e dificuldade de segurar um lápis com firmeza, já
que escrever com a mão direita não fazia parte da natureza do seu ser. E esta insegurança se
projetou para a leitura e outras questões, principalmente no tocante a qualquer processo de
aprendizagem. Sentia-se incapaz de aprender coisas novas. Completou o Ensino
Fundamental, repetindo algumas séries. Desistiu do Ensino Médio para se dedicar a estudar
para concursos públicos. Passou na seleção para Serviços Gerais da FURG e somente anos
depois concluiu o Ensino Médio no formato de Supletivo. E transformou esta e outras dores,
em luta política por causas sociais, defendendo o direito de acesso das minorias à educação e
qualidade de vida.
E foi neste contexto que uma amiga militante, que havia concluído recentemente o curso de
Pedagogia na mesma universidade em que meu pai estudava e que também minha mãe
trabalhava, montou um pequeno Jardim-de-Infância em nosso bairro. A escola era, na
verdade, a garagem grande da sua casa. Tinha um pátio enorme, um cachorro no quintal e um
vídeo-game que podíamos usar quando nossos pais se atrasavam ao fim das aulas. Mas o mais
impressionante era o tamanho da sua dedicação em acolher a todos. Minha lembrança dessa
mulher é de um ser amoroso e paciente, que ria conosco das nossas conclusões espontâneas
de crianças sobre os fatos da vida. Movimentava ações sociais no bairro, entre as famílias,
fazia campanhas de arrecadação de brinquedos, livros e roupas no inverno para agasalhar
bem as crianças mais carentes a quem ensinava. Estas chegavam na escola-casa muitas vezes
com fome, e ela recebia-nos com música e uma grande bacia de pipoca. Ensinou-nos, além do
alfabeto, a acolher o outro com o coração, a respeitar o modo de ser de cada um, exaltando o
que cada criança tivesse de maior potência dentro de si. Seu nome era Ester.
Sobre a sua didática pouco recordo. Lembro da sala cheia de cores e do quintal cheio de
plantas. Da “tia’’ Ester me ensinando a recitar poesia para a apresentação do dia das Mães e
lendo os livros que eu levava para a escola. E de fazer todos os dias os mesmos exercícios que
fizera nas escolinhas: escrever repetidamente traços e círculos no papel, até o fim da linha… E
também do seu marido e filha que, vez ou outra, “invadiam’’ a escola para nos ensinar algo:
amarrar cadarços, trançar o cabelo, apontar lápis, organizar a mochila, usar garfo e faca nas
refeições, pintar “dentro da linha’’, recortar seguindo o pontilhado, pular elástico, plantar
feijão. Ele aparecia de surpresa, cantando, e nos ensinava algo de bom pra levar para a vida
toda.
Chegou, pois, o primeiro ano, ou primeira série. Com muito esforço meus pais conseguiram
uma bolsa de estudo no Colégio São Francisco, do grupo Marista. Ano de 1991, eu então com
6 anos, iniciei oficialmente o Ensino Fundamental. A escola, que até hoje é referência em
ensino no município, acolhia, naquele ano, três turmas de primeira série. Eu e mais alguns
trazíamos conosco a experiência vivida no Jardim-da-Infância. A maioria das crianças, no
entanto, entrava pela primeira vez em uma escola, onde passaria metade do dia. Nesse
sentido, os primeiros meses foram dedicados a acolher e trabalhar a segurança nos colegas
que estavam pela primeira vez frequentando um espaço escolar. Na turma havia uma média
de 30 crianças, a maioria de famílias de classe média-alta, inseridas em um contexto muito
mais amplo que o daquela escolinha na garagem da casa da professora do Jardim. Estava na
“escola das crianças grandes’’, cheia de salas de aula ao redor de um pátio tão grande que os
olhos pequenos de criança não alcançavam o fim. Logo na primeira semana me perdi várias
vezes no caminho de volta ao banheiro, pois as salas de aula eram aparentemente todas
iguais, nos mesmos formatos, cadeiras enfileiradas e crianças igualmente vestidas com seus
uniformes verdes. Em algumas semanas, descobri que os frades que zelavam da escola eram
bons amigos. O prédio da escola era muito antigo e muito, mas muito frequentado pelos
pombos da cidade. Os frades ensinavam-nos que devíamos respeitá-los: a eles e aos pombos;
e repetiam os preceitos franciscanos diariamente como parte de uma alfabetização espiritual
ou filosófica que desejavam compartilhar. Eu acreditava que fora o próprio São Francisco de
Assis que fundara a escola e convidara os pombos todos da cidade a irem ter os telhados da
escola como abrigo. Imaginava que, tal como as pessoas, houvesse em algum lugar uma
escola para estas aves. Me sentia estudando em um grande castelo, cheio de lugares secretos,
como a sala do piano, onde nos escondíamos para desvendar algum mistério que
inventávamos.
Desenhávamos mapas de tesouros (que geralmente eram representados por sementes ou
pedras) nas últimas folhas do caderno. Todos os dias a professora fazia a chamada dos alunos
presentes, e os nomes dos colegas ausentes eram escritos em um canto colorido do quadro,
para que ficassem de certa forma presentes para nós. Lembro de poucas situações em que
não houvesse pelo menos uma criança chorando. Não havia nenhum tipo de assistente em
sala e a professora, como dizem “se virava nos trinta’’, nos quarenta ou em quantos fosse
possível. Em verdade, ela passava alguns ‘’sufocos’’. Quando, enfim, o silêncio pairava na sala,
ela suspirava fundo e cantava para a turma uma música do repertório marista. Também
cantávamos o hino nacional todos os dias e rezávamos uma prece ao início da aula. Cantar e
brincar não era proibido, mas os momentos de ludicidade eram poucos. Sua dedicação diária
estava em “conter’’ as crianças mais ‘’rebeldes’’ (por vezes, com auxílio do frei superior) e em
ensinar-nos a desenvolver a coordenação motora para, mais tarde, aprender a escrever.
Enquanto isso, um alfabeto colorido mas muito antigo, decorava a sala de aula no alto do
quadro de giz.
Quando chegava em casa, geralmente em noites bem frias, montava, em algum canto da casa
uma pequena escolinha. Tinha um pequeno quadro de giz onde “ensinava’’ às minhas bonecas
e pelúcias, o que aprendera na escola. Letras de todos os tamanhos e formas, tracejados e
qualquer coisa relevante naquele momento, tendo o cuidado de ensinar com mais dedicação
às bonecas menores e aos animais, principalmente meu cachorro. Tinha certeza de que eles
estavam tão empolgados quanto eu neste processo.
Os exercícios de coordenação motora fina eram os mesmos do Jardim-de-Infância, e
treinados com as crianças maiores desde as creches: repetição dos tracejados, círculos, ziguezagues….
Até o fim da linha. Todos os dias. Acabava o caderno, ganhava outro para seguir
fazendo o mesmo. Quando a turma se dispersava em uma atividade, entregava a cada um
uma folha com o mesmo exercício, impressa em um mimeógrafo. O cheiro da folha recém
impressa inspirava o novo. Mas o exercício para mim já era velho, não tinha mais a mesma
emoção que no início e eu, por vezes, chorava em ter que fazê-lo sob a ameaça de ficar sem
recreio ou outra perda possível.
Com o tempo, entretanto, meus pais perceberam que passei a demonstrar uma certa
resistência em ‘’desenhar as palavras’’, como assim eu chamava a escrita. Não tinha mais
paciência em fazer os tracejados ou, quando tinha, fazia com pouco ou nenhum capricho. Meu
pai foi, então, à escola, questionar e conversar com minha professora sobre a questão desse
tipo de exercício diário e repetitivo estar se tornando exaustivo para mim, e atrapalhando o
processo natural da minha alfabetização. Ou talvez ele tenha se dirigido a ela com a afirmação
de que eu não faria mais deveres de casa e ponto final. É possível, também. O fato é que,
durante os meses seguintes, as minhas atividades escolares mudaram. Tínhamos mais
colorido nos cadernos e na sala de aula. Os colegas que estavam iniciando a jornada da
escolaridade estavam mais ‘’calmos’’ e participativos, e a professora já gritava menos. Eu fazia
um grande esforço em manter o mesmo entusiasmo, pois entendia, minimamente, que a
oportunidade de estudar naquela escola era como encontrar um tesouro no fundo do mar.
Mas ali, naqueles tempos já nos primeiros anos, as circunstâncias do ambiente escolar me
fizeram perceber que no mundo ‘’dos adultos’’ havia (e há!) todo tipo de opressão, das mais
sutis às mais escancaradas. Que é possível subtrair aos poucos a coragem de uma criança ser
ela mesma, de assumir seu papel no mundo enquanto adulto e que o medo e a insegurança
pessoal resultante de todo esse processo pode ser usado como um intrumento de poder
político, inclusive.
Anos depois, já tendo atingido as vésperas da idade adulta, conheci uma terapeuta vocacional
com quem dividi todos estes relatos. Trouxe a mim histórias de casos semelhantes, e apontou
a ligação de alguns fatos com o momento que vivia: “ansiedade nível máximo’’ e
“memorização nível mínimo’’. Estudar me deprimia, livros longos e em preto-e-branco me
desestimulavam e, principalmente, perdia a paciência rapidamente se precisasse escrever um
texto longo ou ficar mais de trinta minutos estudando matemática. Escrever era prazeroso,
mas ao mesmo tempo causava certa irritação. Pois o que para mim era um grande e irritante
mistério, para ela era simples de entender, pois em sua carreira encontrou várias pessoas da
minha geração, com os mesmos contrastes, e histórias de vida semelhantes. Aconteceu
comigo o que aconteceu e vem acontecendo com várias crianças por todos os lados do
mundo: em pleno processo do despertar para o universo das linguagens, a maioria de nós é
obrigada(o) a se “enquadrar’’ em um modelo de ensino que não respeita o tempo e o
desenrolar das descobertas da sua própria capacidade de aprender. Precisam estar,
simultaneamente prontos, para receber as enxurradas de informações e absorvê-las ao
máximo, do jeito que puderem.
Um dia, conversando sobre esses assuntos com meu pai, que depois de muitas experiências
intensas em sua carreira de policial, formou-se em Geografia e fez Mestrado em Educação
Ambiental, desgarrando-se da polícia para seguir a carreira de docente no Norte do país
(levando eu e meu irmão a experienciar essas andanças consigo), lembramos da minha
professora do primário. Ele contou-me algo fascinante: sua visão de pai sobre a sala de aula e
o modelo onde estávamos todos inseridos, eu, as outras trinta e poucas crianças e a
professora. Esta, uma jovem professora do interior do Rio Grande do Sul, de raízes e sotaque
germânicos, viveu muitos desafios em seu ambiente de trabalho. A ela, o processo também
era opressor. Sei disto porque hoje, aos 31 anos, tendo encontrado na Educação um caminho
para ajudar na transformação do mundo e na minha própria, compreendo bem o que esta
jovem professora passava diariamente. Há que se ter muito amor e muita fé nesta profissão e
nesta missão de despertar nos seres humanos em formação a infinita potência criadora e
aprendiz que todos carregamos. E muita paciência neste modelo que formatou os processos
de ensinagens em um padrão quase industrial, visando aparentemente, a produção de
cidadãos-padrão facilmente manipuláveis.
Nesta mesma conversa, falamos sobre os mestres que nos inspiraram à vida, e meu pai
perguntou-me duas coisas. A primeira me fez rir. A segunda, quase a chorar. Iniciou, em uma
brincadeira, questionando-me se eu havia perdoado a “tia Gisele’’, minha professora do
primário, por ter retirado os lápis-de-cor das atividades de escrita, deixando-os restritos
apenas às atividades de “colorir’’. Recordei ali, que a transição entre o primeiro e o segundo
ano do Ensino Fundamental foi marcada, também, pela ausência das cores nos cadernos e
folhas de atividades impressas nos mimeógrafos. Simbolicamente, é possível comparar estas
mudanças a outras viradas e mudanças radicais vivenciadas pelos aprendizes, que passam
desavisados como quem é surpreendido por uma onda gigante. Mas o detalhe é que ninguém
os prepara pra isso, mas todos seguem superando e atravessando o processo de aprender
mesmo com a dureza que muitas vezes o sistema oferece.
A sorte das crianças é que elas têm colorido por dentro, arco-íris nos olhos e umas faíscas de
esperança que vêm lá de não sei onde e perigosamente contaminam os desesperançosos de
mudanças, espalhando pelos arredores com uma fé no futuro de alto contágio. Isto me fez
lembrar da segunda pergunta do meu pai. Ele disse: filha, que é a Esperança? A que ele
mesmo respondeu rapidamente, trazendo à memória a definição do mestre Paulo Freire, que
transcrevo aqui: ‘’é preciso ter esperança. Mas tem de ser esperança do verbo esperançar…
Esperança do verbo esperar não é esperança, é espera… Esperança é ir atrás, é se juntar, é não
desistir. É ser capaz de recusar aquilo que apodrece a nossa capacidade de integridade e a
nossa fé ativa nas obras. Esperança é a capacidade de olhar e reagir àquilo que parece não ter
saída…’’
Meu processo de alfabetização neste mundo se deu pelo exercício desta esperança. Desde os
primeiros traços até o momento em que digito estas palavras. Desde o tempo em que tinha a
certeza de criança de que seria uma ‘‘salvadora de animais’’, astronauta e professora de
Ciências nas horas vagas, até o momento presente, eu Bruna, educadora, bióloga,
brinquedista, inventadora, e mais uma porção de coisas que sou e sei, mais aquelas que sou e
não sei ainda, eu tenho esperançado. E esperançarei tanto quanto for possível nessa estrada
infinita de possibilidades e modos de caminhar que é a Educação.
Acredito nesta esperança ativa e me volto para a criança, esperançosa por natureza, a quem
conjugo na terceira pessoa do tempo presente: ela, esperança.
Porto Alegre – RS; 14 de fevereiro de 2017.